domingo, 30 de novembro de 2008

No Centro 2 - Shalom Ramone

The KKK took my baby away, they took her away, away from me... Essa era a voz disforme, desafinada, numa dicção terrível, que, durante anos, tanto marcou uma hora semanal daquela rádio dentro da caixa d'água.

Era assim que Jeffrey Ross Hyman cantava. Do alto dos seus aproximados dois metros, pernas finas e zambetas, com o corpo lembrando uma jibóia grávida, sua voz distorcida marcou a história do rock numa das bandas mais importantes que já existiram, pertencente a um estilo no qual a técnica não primava - muito pelo contrário -, em que poucos acordes eram o bastante e que a atitude e a diversão eram o principal. Bem, mais recentemente descobri que tudo terminou apenas em nome do dinheiro e dos compromissos empresariais, mas prefiro lembrar de outra forma...

Era ele, Joey Ramone, quem eu ouvia cantar, no início e no final de cada broadcast do Rock Mobral. Eu e meu amigo DJ Cirrose, na verdade - além dos convidados e convidadas que apareciam de vez em quando, todos habitués do Bar do Jair, onde costumávamos tomar cerveja, rabo de galo e caracu, comendo torresmos, pão com mortadela e ovos de codorna.

O programa costumava começar e terminar sempre com uma música dos Ramones. Tocamos muitas vezes Rock and Roll High School, Pet Sematary, Chain Saw, Blitzkrieg Bop, Comando (também com os Ratos de Porão), Sheena Is a Punk Rocker, etc. É verdade que às vezes abríamos uma exceção e fechávamos nossa hora com Orgasmatron, tocada pelo Sepultura.

Nossa ligação com a banda novaiorquina chegou ao seu ápice quando assistimos a um show deles no Olympia, em São Paulo. Lembro que o DJ Cirrose portava uma jaqueta de couro preta que o fez cozinhar durante a apresentação, tendo ele de ir ao banheiro várias vezes. Recordo-me também de que mal conseguíamos por os pés no chão, de tão lotado que estava o lugar. Era impossível não ir de lá para cá, pois a multidão se movia com um ser que possuía vida própria, arrastando suas células de um canto para outro. Para respirar, eu, que não sou muito baixo, tinha que botar o nariz para cima na busca de um pouco de oxigênio. Ao final, retornamos para nossa cidade na mesma Caravan branca - de motor refeito - em que viemos.

Passados tanto anos desde aquela época, a recordação dos Ramones surgiu num desses DVDs baratos que compramos nas Americanas. Nele pude ver um pouco do cotidiano do grupo e os bastidores de alguns shows. Lá estavam componentes fundadores, como o Dee Dee Ramone, e outros integrantes posteriores, como o CJ Ramone. A lembrança que este DVD vai deixar para sempre em minha memória não é a dos shows, nem das músicas ou dos lugares visitados pela banda, mas a de uma desilusão.

Jamais me esquecerei de que John William Cummins, mais conhecido como Johnny Ramone, e o Joey Ramone passaram os últimos anos da banda sem praticamente trocarem uma palavra. Critiquem-me por minha ingenuidade, mas isto nunca passou por minha cabeça. Imaginar que aquela banda, com seu som irreverente, letras engraçadas, visual despojado, havia terminado de modo tão melancólico - com seus componentes detestando-se, ou apenas sentindo um pelo outro uma profunda indiferença -, era inconcebível para mim. Lá havia também a informação de que essa aparência despojada do grupo - jaqueta preta, calças jeans surradas e tênis velhos - era controlada rigidamente pelo Johnny, sendo impensável qualquer alteração.

Segundo diversas fontes consultadas - sentença esta muito útil para aqueles momentos em que não se está com saco para citar as referências -, vários foram os fatores causadores da briga entre Joey e Johnny. Um deles seria a diferença de posicionamento político. Johnny era republicano, conservador, simpatizava com Reagan e apoiou a guerra contra o Iraque (a do Bush pai). Joey, em contrapartida, teria uma posição oposta. Dizem também que Johnny "roubou" uma namorada do Joey, e isto é difícil de perdoar - acredito ser este um um motivo mais sólido.

As mesmas fontes que falam em causa passional para a contenda, mencionam que a música The KKK took my baby away foi escrita por Joey como um desabafo à sua perda amorosa. Não é preciso ser um gênio para imaginar quem estaria representando a Ku Klux Klan na canção...

Hoje, caminho pelo centro de Fortaleza. Cidade ensolarada, quente porém com uma brisa marinha apaziguadora. Suas ruas centrais são antigas, estreitas, algumas ainda com calçamento. Caminho cedo, antes das sete da manhã. Vou ao trabalho, estaciono o carro numa vaga particular - não é muito recomendável deixá-lo todos os dias na rua. Seguro minha pasta com a mão direita, está um pouco pesada, como sempre, pois costumo carregar mais coisas do que é necessário. Reconheço alguns transeuntes e moradores das casas. Não falo com eles, pois cada um anda ensimesmado. Os freqüentadores dos bares também são os mesmos, assim como os mendigos, que dormem pelas calçadas, ao desamparo. Não é o mais belo dos lugares, mas me é familiar.

Na rua estreita, poucos carros trafegam àquela hora, sendo possível caminhar à pé no meio da pista. Escolho a calçada de sempre - por ter um piso melhor. Aliás, nossa cidade é quase desprovida de calçadas, ocupadas que são - quando existem - por vendedores de todos os tipos. Enfim, caminho do meu lado predileto da rua. Vejo passar uma garota bonita - essa é a primeira vez que a encontro. Desvio de um pai segurando a mão de sua filhinha à caminho da escola. Evito a colisão com um poste e tento não pisar em alguns excrementos. À minha frente surge, então, uma criatura sui generis, que de vez em quando passa por mim a caminho do trabalho - penso eu.

Trata-se de um sujeito de estatura mediana cearense - quer dizer, para sua geração, que tem mais de quarenta, já que os jovens são bem mais altos. É magro, moreno, sem muitos cabelos - não chegando a ser calvo -, usa um bigodinho que, no passado, costumava chamar de "safado" e - o que me chamou a atenção desde a primeira vez que o vi - costuma vestir uma camiseta dos Ramones.

Bem, até aí nada de mais. Não é de se estranhar encontrar alguém usando uma camiseta de rock em Fortaleza. Quero dizer, também não chega a ser muito freqüente. Mas o que despertou minha curiosidade é o tipo em questão. Meu pre-conceito nunca me permitiria imaginar um sujeito daqueles vestindo uma camisa dos Ramones. Ele, definitivamente, não me parece o tipo certo. Vejam só, eu falando de tipos... Juro que, da primeira vez que o vi, pensei que a camisa tinha sido dada por alguém e que ele a usava por falta de opção - igual àquelas camisas de eleição, que vão todas para os mais pobres. Contudo, demonstrando meu equívoco, esbarrei com ele outras vezes pela rua, e o sujeito tinha uma verdadeira coleção. Assim, tive que rever minha opinião e comecei a considerá-lo como um fã.

Devo dizer, entretando, que existe um atenuante para a minha culpa. Um fator que ameniza um pouco o meu juízo preconceituoso acerca de sua aparência, mas que, por outro lado, exacerba uma forma diferente de preconceito. Num primeiro momento, julguei que alguém com aquelas características não poderia conhecer nem gostar dos Ramones, principalmente por um detalhe em especial: o cara andava com uma cruz do Shalom pendurada no pescoço.

Naquela manhã, quando o observei pela primeira vez, notei dois símbolos conflitantes - ao menos para mim - estampados no peito do sujeito. Uma camiseta de uma banda punk e a cruz representativa de um grupo carismático da igreja católica. O que poderia haver unido, numa única personalidade, duas idéias tão distintas? Para mim, o punk tinha aquele significado anti-religioso, anárquico, debochado, enquanto que o movimento carismático representava uma aproximação dos católicos com algumas das práticas dos evangélicos. Juntar tudo isso num ideal só me parecia, no mínimo, incongruente.

Quando notei que não era coincidência, que a cruz e o punk estavam sempre presentes, percebi que realmente tudo era intencional. Qual seria, então, a explicação? Talvez não haja nenhuma, pois o ser humano não precisa ser explicado, mas a mente curiosa não se contenta com esse tipo de abordagem, querendo sempre construir idéias onde talvez realmente não haja nada a ser compreendido.

Já que uma explicação se tornou inevitável, vou culpar o vilão mais à mão: a sociedade de massas. Eu tinha uma imagem dos Ramones totalmente distinta daquela que me foi mostrada no referido DVD que comprei. Assistindo-o, pude notar que o fator unificador da banda, o que os mantinha juntos - pelo menos no final -, era o dinheiro e um certo comodismo - do tipo que adia a aposentadoria daqueles que não sabem o que fazer depois de uma vida de trabalho. Onde eu julgava haver diversão e amizade, existia frieza e esforço profissional. Até mesmo as roupas deles tinham um caráter intencional, a fim de manter uma marca registrada. Deste modo, os meios de comunicação de massa criam ilusões que nos captam como armadilhas.

Da mesma forma que eu me iludi com a imagem dos Ramones criada pelos mass media, o sujeito da camiseta talvez nem saiba nada disso. Ou se sabe, releva, pois talvez seja mais inteligente que eu e entenda que, não importando a verdade dos fatos, a explicação racional, o que vale é apreciar o momento e recordar o que é bom. Assim, se para ele o som dos Ramones sempre agradou e se ele viveu bons momentos embalado pela voz de Joey, então não há razão para desgosto. Deixe esse tipo de observação para os mais azedos, como este que escreve.

Se os Ramones são apenas música, e não aqueles que as criaram - o que não deixa de ser verdade, pois a obra pode ser isolada de quem a cria, passando a ter existência própria -, então ele está certo. Não importam as idéias, os fatos históricos e nenhum outro tipo de bobagem intelectual. Apreciemos, então, os acordes simples. Que seja possível a convivência entre a música, enquanto música apenas, e qualquer tipo de filosofia ou crença. Que os preconceituosos, como aquele que observou o cara de bigode, se danem. Que seja bem-vindo até um novo integrante: apresento-lhes o Shalom Ramone. Hey ho, let's go.

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