quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

LITERATURA E CINEMA - DECUPAGEM


Decupagem de Momento no Café, de Manuel Bandeira


Este é um pequeno exercício sobre como criar uma seqüência fílmica baseada em um determinado texto, como um poema.

- PLANO 1
Exterior, final de tarde, rua em frente ao café.
Plano geral. Visão de um cortejo fúnebre passando: caixão sobre um carro empurrado manualmente; viúva chorando com a cabeça coberta e um terço nas mãos; pessoas de preto; padre com turíbulo.
Ruídos: sons da rua abafados gradativamente pela ladainha.
Música: ladainha crescente.

- PLANO 2
Exterior, calçada em frente ao café.
Plano geral. Parte frontal do café. Câmera em zoom para um plano de conjunto de um grupo de cinco homens sentados à mesa. Eles estão vestidos ao estilo dos anos 1950, inclusive com chapéus.
Música: samba canção abafado pela ladainha crescente.

- PLANO 3
Exterior, rua em frente ao café.
Plano médio. Câmera em travelling, ligeiramente em plongée, mostrando o esquife em movimento.
Música/ruído: ladainha em volume alto.

- PLANO 4
Exterior, calçada em frente ao café.
Plano médio. Cada um dos homens à mesa é mostrado pela câmera em travelling, ligeiramente em contra plongée. Todos saúdam o corpo com ar distraído e confiante, à exceção de um deles.
Música/ruído: ladainha em volume alto.

- PLANO 5
Exterior, rua em frente ao café.
Plano médio. Câmera em travelling, ligeiramente em plongée, mostrando o padre e, depois, a viúva em movimento.
Música/ruído: ladainha em volume alto.

- PLANO 6
Exterior, calçada em frente ao café.
Plano americano. Mostra o homem que ainda não havia saudado o morto iniciar um gesto longo e lento de tirar o chapéu.

- PLANO 7
Exterior, rua em frente ao café.
Plano americano. Câmera em travelling, ligeiramente em plongée, para trás acompanhando o avanço da viúva. Zoom em direção ao rosto da mesma até atingir o primeiro plano. Detalhe do sofrimento da mulher, que mal consegue entoar a música.
Música/ruído: ladainha em volume alto.

- PLANO 8
Exterior, calçada em frente ao café.
Primeiríssimo plano. Fixado no rosto do último homem a cumprimentar o morto. Seu olhar demonstra concentração em determinado pensamento, semblante filosófico. O rosto se move acompanhando o movimento do cortejo. Zoom para plano de detalhe focalizando seus olhos.
Música/ruído: ladainha perdendo força, dando lugar ao pensamento do mesmo transformando-se nas seguintes palavras:
- Agitação feroz e sem finalidade é a vida. Toda ela uma traição. Lá se vai a matéria de um homem, liberta de sua alma extinta.

- PLANO 9
Exterior, calçada em frente ao café.
Plano geral. Cortejo é mostrado por trás, distanciando-se, com a câmera fixa na posição dos homens no café.
Música: ladainha vai diminuindo e o samba canção volta a ganhar força.

Momento no Café

Poema de Manuel Bandeira

MOMENTO NO CAFÉ

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade

Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

LITERATURA E HISTÓRIA - ENSAIO


O POEMA DE SETE FACES E ALGUNS HERDEIROS


1. Introdução

Jorge Luis Borges escreveu, em seu ensaio Kafka e seus precursores, que “cada escritor cria seus precursores”. Os de Kafka, elencados por Borges, seriam, entre outros, o grego Zenão, o chinês Han Yu (século IX), Kierkegaard (fato já bastante conhecido), Browning, Léon Bloy e Lord Dunsany. Segundo o argentino, é possível encontrar traços de Kafka em textos de cada um dos citados, sendo que estes escritos nem sempre se parecem entre si. Se o autor de A Metamorfose não tivesse sido publicado, essa similaridade jamais seria percebida. A leitura de um poema de Browning é afinada e desviada pela leitura de Kafka. O próprio poeta não lia seu texto, então, como o lemos hoje. Borges afirma que o trabalho de um escritor “modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro”.

Com esse pensamento, Borges inverte a ordem tradicionalmente estabelecida de que um autor é influenciado pelos seus precursores, propondo que um grande escritor recria o passado, iluminando textos de outros períodos e lugares. Assim, através da leitura de Kafka, estaríamos aptos, ou fadados, a ler obras mais antigas com um outro olhar, o de alguém que já vislumbrou o universo kafkiano e foi por ele modificado. Na verdade, alguns autores até então considerados de segunda linha poderiam ter suas obras relidas através de uma ótica distinta e suas criações passariam a ganhar mais valor para os críticos.

Pensamento semelhante pode ser encontrado na historiografia moderna e até mesmo nas ciências naturais. Neste último caso, um livro chamado Maya, do escritor Jostein Gaarder, trata, entre outras coisas, da evolução das espécies, discutindo se houve um propósito para tantas mutações, se há algum significado por trás dessas transformações. Ele indaga se um espectador presente na Terra milhões de anos atrás seria capaz de imaginar que aquelas criaturas evoluiriam para seres dotados de consciência, capazes de questionar sua presença no universo, bem como sua origem. Não seria a existência desses seres primitivos explicada pela necessidade da produção de criaturas mais evoluídas? Por conseguinte, não seria a nossa presença no universo explicável por alguma necessidade futura, inevitável? Assim, nossa existência atual explicaria o passado, do mesmo modo que Kafka ajuda a olhar seus antecessores por um ângulo diverso.

Do mesmo modo, o século XX produziu uma abordagem nada tradicional da história. Desde tempos longínquos costuma-se esticar o fio do tempo e nele encadear eventos, pessoas, civilizações. O passado seria algo imutável, perfeitamente determinado, tendo seus fatos explicados através de critérios tidos como objetivos. A novidade trazida no século passado seria a percepção de que a história depende fundamentalmente de quem a interpreta, de seu ponto de vista social e de seus interesses. Entendeu-se, portanto, que história é constantemente reinterpretada, de acordo com novas idéias ou interesses, segundo critérios distintos, ocasionando alterações profundas na percepção do passado. Uma frase, um tanto reducionista, que ilustra bem esse conceito afirma que a história é contada pelos vencedores, indicando que, caso os interesses fossem outros, diferente seria a interpretação dos fatos. Na literatura, George Orwell ilustra bem esse fenômeno de transfiguração histórica no livro 1984, que descreve uma utopia futurista às avessas, onde o mundo é controlado pelo Grande Irmão – o Big Brother, já digerido pela cultura de massas e metamorfoseado em algo totalmente distinto –, um construto social que impõe sua autoridade sobre os cidadãos. Uma das ferramentas utilizadas para controle social é a alteração da história. Segundo os interesses do momento, algumas civilizações seriam tidas como inimigas; em outras ocasiões, os adversários mudam e os antigos inimigos agora são aliados, ou melhor, sempre foram aliados, e as pessoas acabam esquecendo, ou fingindo esquecer, o que passou. Desse modo, a história passa a ser ferramenta de controle, manipulada por critérios políticos. Apesar de se tratar de uma situação hipotética, Orwell talvez receasse que algo assim pudesse ocorrer. Estaria ele de todo enganado?

Do mesmo modo que a história, a literatura também está sujeita a fatores sociais, sendo o autor sempre influenciado pelo meio em que vive, por seu tempo e ideologias em conflito. Assim, é impossível ignorar fatores histórico-sociais no estudo da literatura, sabendo, claro, que estes são apenas componentes do fenômeno estético. Como diria Antonio Candido: “Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno”. Deste modo, os críticos modernos abordam o texto literário como um todo, percebendo sua estrutura e também seu meio formador. Ainda de acordo com Candido:

[...] quando estamos no terreno da crítica literária somos levados a analisar a intimidade das obras, e o que interessa é averiguar que fatores atuam na organização interna, de maneira a constituir uma estrutura peculiar. Tomando o fator social, procuraríamos determinar se ele fornece apenas matéria (ambiente, costumes, traços grupais, idéias), que serve de veículo para conduzir a corrente criadora (nos termos de LUKÁCS, se apenas possibilita a realização do valor estético); ou se, além disso, é elemento que atua na constituição do que há de essencial na obra enquanto obra de arte (nos termos de LUKÁCS, se é determinante do valor estético).

Tendo o contexto histórico-social em mente, será feita aqui uma análise comparativa de trechos do Poema de Sete Faces, de Carlos Drummond de Andrade, com alguns outros poemas que, aparentemente, surgiram para com ele dialogar. Esses seriam Let’s Play That, de Torquato Neto e Com Licença Poética, de Adélia Prado. Vale ressaltar que serão úteis também as idéias acerca de paródia e paráfrase levantadas por Affonso Romano de Sant’Anna.


2. Intertextualidade e o Poema de Sete Faces

É rica a possibilidade de análise intertextual tendo como referência o Poema de Sete Faces, já que muitos autores posteriores a Drummond utilizaram sua idéia como referência para a elaboração de seus trabalhos. Na Internet, foi possível localizar rapidamente uma análise semiótica dos textos citados anteriormente, substituindo-se o poema do Torquato Neto por um de Orides Fontela, CDA (Imitado), e outro de Chico Buarque de Hollanda, Até o fim. Sua autora é Marta Pereira de Oliveira e ela lança mão das idéias de Greimas acerca do percurso gerativo do sentido. No final de seu trabalho, faz referência a dois outros escritores que dialogam com o texto de Drummond: Sidney Olívio, com Anjo, e Maria das Graças Paulino em “Aquelas Sete Faces”. Como é possível perceber, a herança do Poema de Sete Faces é bastante extensa e as possibilidades de análise intertextual muito vastas.

O poema de Drummond inicia-se da seguinte maneira:

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

Drummond é classificado como um poeta modernista e o período em que publicou o texto em questão, 1930, localiza-se no entre guerras. O mundo vivia, então, a grande depressão, caracterizada por desemprego em massa e economia estagnada. Havia um mal-estar no ar, ainda mais com a ascensão de governos autoritários pelo mundo (inclusive no Brasil) e o sentimento de que uma nova guerra poderia ocorrer. Nesse clima, é fácil imaginar a arte representando atitudes e sentimentos tão díspares como a loucura, a necessidade premente de aproveitamento da vida (a década de 1920 foi batizada como “os anos loucos”), a denúncia da violência e, claro, o pessimismo.

Assim, o pessimismo se apresenta logo de início no texto de Drummond. Logo em seu nascimento, o escritor foi ungido por um anjo torto com um sinal. Só que esse anjo, como ser das sombras, marca o escritor com a sina da tristeza, da esquisitice, da estranheza. Sabe-se que esse é o fado da maioria dos grandes artistas, pois estes apresentam características nada peculiares à maioria da população e tendem a destoar do discurso padrão, mostrando um olhar diferenciado e, freqüentemente, desconstrutivo.

O poeta piauiense Torquato Neto pertence a outro período histórico, situando sua fase produtiva principalmente nos anos 60 do século passado. Essa época foi fortemente marcada por movimentos de contracultura, pela intenção de provocar mudanças, quebrar tradições, desconstruir discursos. Os jovens de então sentiam-se oprimidos pelas rígidas regras sociais a eles impostas e iniciaram uma revolução em diversas frentes: comportamental, sexual e intelectual. No mundo, foi a era marcada pelo festival de Woodstock, pelo desejo de por fim à guerra do Vietnã, pela explosão do Rock and Roll, da liberação sexual e também pelo uso massivo de drogas. No Brasil, Torquato foi um dos criadores do movimento tropicalista, sendo seu estilo marcado, entre outras coisas, pela irreverência, rebeldia e desejo de contestação. Seu poema Let’s Play That mostra alguns desses traços:

Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião

eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes

Let's play that

O anjo que surge para o poeta é principalmente louco, mas também se apresenta como torto, assim como no poema de Drummond. Do mesmo modo que no texto deste, ele vai vaticinar o destino do narrador, só que desta vez através da leitura de sua mão. No entanto, o que caracteriza mais fortemente o poema é a sentença em que o anjo ordena ao poeta que vá “desafinar o coro dos contentes”. Essa é uma frase muito famosa, simbólica, sendo utilizada pelos movimentos de contracultura.

Adélia Prado é mineira, assim como Drummond, e dele teve um grande incentivo no início de sua carreira. Sua poesia é singela, muitas vezes de caráter intimista, falsamente despretensiosa. Ela trata de temas cotidianos buscando torná-los universais. Adélia mencionou certa vez que a realidade em Divinópolis e na China é idêntica, modificando-se apenas o idioma. Com seu olhar feminino e às vezes feminista, observa a vida no interior de Minas e suas peculiaridades. O aspecto religioso é fundamental para a análise global de sua obra.

Seu poema Licença Poética dialoga com o Poema de Sete Faces:

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
...
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.

Através de seu olhar feminino, o anjo que aparece à poetisa não é nem torto, nem louco, mas esbelto. Ele também gosta de profecias e a encarrega de carregar uma bandeira. Ela decide cumprir sua sina, inaugurando linhagens, fundando reinos, escrevendo. Abraça sua dor sem amargura, deixando as queixas para os homens. Mostra-se otimista, afinal, e forte. Diferentemente do que acontece no poema de Drummond, o espírito prático supera a angústia e ela atribui tal fato à sua condição de mulher.

Affonso Romano de Sant’Anna publicou um livro em que discute, entre outras coisas, os conceitos de paráfrase, estilização e paródia. Tomando como princípio as definições elaboradas por lingüistas russos, como Tynianov e Bakhtin, ele busca uma nova abordagem, estendendo o alcance original. Seja na paráfrase, na estilização ou na paródia, existe um elemento em comum: o deslocamento. Na paráfrase, o deslocamento é mínimo, sendo utilizadas as técnicas de citação e transcrição direta. A estilização trabalha com um desvio maior: “Ocorre um jogo de diferenciação em relação ao texto original sem que, contudo, haja traição ao seu significado primeiro”. Na paródia, o distanciamento é enorme, ocorrendo alteração profunda no sentido. Na leitura de uma paródia percebem-se duas vozes: uma em presença, o texto parodístico; outra em ausência, o texto parodiado. Segundo as palavras do autor: “Enquanto a paráfrase é um discurso em repouso, e a estilização é a movimentação do discurso, a paródia é o discurso em progresso”.

Nos textos ora analisados, podemos perceber que, tanto o poema de Torquato Neto, quanto o de Adélia Prado, são exemplos de paródia do Poema de Sete Faces. Uma idéia original é mantida, a do anjo que chega para alguém e o encarrega de uma missão. Entretanto, esse anjo é diferente para cada um dos autores, bem como o vaticínio por ele elaborado. Para Drummond, o anjo é torto. Nos outros dois casos, louco e esbelto, respectivamente.

A atitude dos narradores é completamente distinta nos três poemas, mas suas reações às palavras dos anjos, no entanto, são sempre de aceitação. O primeiro deles percebe-se como um ser estranho, deslocado, quase um pária. O segundo, através da sentença Let’s play that, afirma que realmente buscará desafinar o coro dos contentes. No poema de Adélia Prado, carregar bandeiras foi um fardo aceito, com dor, mas, principalmente, com alegria.


3. Conclusão

O principal objetivo deste trabalho foi realizar uma análise comparativa de determinadas passagens de três poemas – Poema de Sete Faces, Let’s Play That e Com Licença Poética – sendo que o primeiro destes teria influenciado a criação dos outros dois. Este fato torna fundamental a abordagem intertextual, notando o que foi alterado, distorcido, pelas diversas releituras.

Além da análise textual, foi realizada também uma pequena reflexão acerca dos contextos histórico-sociais em que cada obra e autor estavam inseridos, buscando, assim, auxiliar a compreensão dos referidos textos. Seguiu-se assim, a linha de pensamento de autores como o anteriormente citado Antonio Candido, que acreditam essencial a descoberta de fatores que influenciem a estrutura interna da obra.

A partir da análise de trechos dos poemas, foi possível perceber que os textos de Torquato Neto e Adélia Prado parodiam o de Drummond, alterando seu sentido básico, provocando um deslocamento em relação ao poema original.

É preciso, ainda, não esquecer a contribuição legada pelo bruxo argentino Jorge Luis Borges. Ele afirmou, como visto no início deste trabalho, que um texto posterior altera a leitura de outro mais antigo. Assim, através de Let’s Play That e Com Licença Poética, temos agora novas possibilidades e significados para o Poema de Sete Faces. Aliás, a importância deste possivelmente seria bem menor se ele não tivesse gerado tantos herdeiros.