sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Cordel do Dalton


Neste final de ano recebi um grande presente de Natal de minha tia Iracema, escritora, poetisa, contista, jornalista, crítica literária, e por aí vai... Ela escreveu um cordel sobre o nascimento de meu filho, Dalton, e o publicou aqui, em Fortaleza. O texto ficou excelente e encheu-nos de emoção e orgulho. Segue abaixo um pouco do texto:

Novembro deu Aristides
no ano de trinta e sete;
a Suzaninha nasceu
no mesmo mês, dia sete;
Dona Júlia e Sir Dehon
não pisaram em falsete.

Há muito eles sonhavam
com essa concepção,
mas as forças do além
numa tal conspiração,
só retomaram o tema
em outra ocasião.

O assunto resolveu-se
em noite de lua cheia,
quando tudo acontece:
o que é branco não mareia
e os cavalos da noite
saem todos em peleia.

Enquanto todos dormiam
(pelo menos, acredito)
as tais forças reunidas
traçaram o veredicto:
faça o que não se fez,
inscreva o não inscrito.

Passado aquele instante
a família enobreceu:
Júlia, só felicidade,
boa vinda concebeu;
confessando a Dehon
aguardar um filho seu.

O mesmo chegou no dia
onze do mês de novembro;
Judite deu a notícia
a todos, do novo membro,
que felizemente verei
neste próximo dezembro.

Filho de Dehon Charles
(um exímio leitor)
e da professora Júlia
(cheia de mérito e candor),
Dalton já veio ao mundo
com nome de escritor.

E assim prossegue... Chegar ao mundo já como protagonista de um livro é privilégio para poucos - compartilhado com o primo Yvens - e talvez seja um indício de que ele também será apaixonado pela palavra escrita. Só o futuro poderá dizer...

The Raven

Estão localizadas abaixo duas traduções para a estrofe final do Corvo, de Poe. A primeira realizada por ninguém menos que Fernando Pessoa e a segunda por Haroldo de Campos que, após a leitura do texto "Lingüística e Poética", de Roman Jakobson, buscou reproduzir a textura poética original (paronomástica). Vejam se ele realmente conseguiu.

    And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
    On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
    And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming,
    And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor;
    And my soul from out that shadow that lies floating on the floor

    Shall be lifted - nevermore!



E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais.
E a minh'alma dessa sombra que no chão há mais e mais

Libertar-se-á... nunca mais.

Tradução de Fernando Pessoa


E o corvo, sem revôo, pára e pousa, pára e pousa
No pálido busto de Palas, justo sobre meus umbrais:
E seus olhos têm o fogo de um demônio que repousa
E o lampião no soalho faz, torvo, a sombra onde ele jaz:
E minha alma dos refolhos dessa sombra onde ele jaz
Ergue o vôo - nunca mais.

Tradução de Haroldo de Campos


domingo, 30 de novembro de 2008

No Centro 2 - Shalom Ramone

The KKK took my baby away, they took her away, away from me... Essa era a voz disforme, desafinada, numa dicção terrível, que, durante anos, tanto marcou uma hora semanal daquela rádio dentro da caixa d'água.

Era assim que Jeffrey Ross Hyman cantava. Do alto dos seus aproximados dois metros, pernas finas e zambetas, com o corpo lembrando uma jibóia grávida, sua voz distorcida marcou a história do rock numa das bandas mais importantes que já existiram, pertencente a um estilo no qual a técnica não primava - muito pelo contrário -, em que poucos acordes eram o bastante e que a atitude e a diversão eram o principal. Bem, mais recentemente descobri que tudo terminou apenas em nome do dinheiro e dos compromissos empresariais, mas prefiro lembrar de outra forma...

Era ele, Joey Ramone, quem eu ouvia cantar, no início e no final de cada broadcast do Rock Mobral. Eu e meu amigo DJ Cirrose, na verdade - além dos convidados e convidadas que apareciam de vez em quando, todos habitués do Bar do Jair, onde costumávamos tomar cerveja, rabo de galo e caracu, comendo torresmos, pão com mortadela e ovos de codorna.

O programa costumava começar e terminar sempre com uma música dos Ramones. Tocamos muitas vezes Rock and Roll High School, Pet Sematary, Chain Saw, Blitzkrieg Bop, Comando (também com os Ratos de Porão), Sheena Is a Punk Rocker, etc. É verdade que às vezes abríamos uma exceção e fechávamos nossa hora com Orgasmatron, tocada pelo Sepultura.

Nossa ligação com a banda novaiorquina chegou ao seu ápice quando assistimos a um show deles no Olympia, em São Paulo. Lembro que o DJ Cirrose portava uma jaqueta de couro preta que o fez cozinhar durante a apresentação, tendo ele de ir ao banheiro várias vezes. Recordo-me também de que mal conseguíamos por os pés no chão, de tão lotado que estava o lugar. Era impossível não ir de lá para cá, pois a multidão se movia com um ser que possuía vida própria, arrastando suas células de um canto para outro. Para respirar, eu, que não sou muito baixo, tinha que botar o nariz para cima na busca de um pouco de oxigênio. Ao final, retornamos para nossa cidade na mesma Caravan branca - de motor refeito - em que viemos.

Passados tanto anos desde aquela época, a recordação dos Ramones surgiu num desses DVDs baratos que compramos nas Americanas. Nele pude ver um pouco do cotidiano do grupo e os bastidores de alguns shows. Lá estavam componentes fundadores, como o Dee Dee Ramone, e outros integrantes posteriores, como o CJ Ramone. A lembrança que este DVD vai deixar para sempre em minha memória não é a dos shows, nem das músicas ou dos lugares visitados pela banda, mas a de uma desilusão.

Jamais me esquecerei de que John William Cummins, mais conhecido como Johnny Ramone, e o Joey Ramone passaram os últimos anos da banda sem praticamente trocarem uma palavra. Critiquem-me por minha ingenuidade, mas isto nunca passou por minha cabeça. Imaginar que aquela banda, com seu som irreverente, letras engraçadas, visual despojado, havia terminado de modo tão melancólico - com seus componentes detestando-se, ou apenas sentindo um pelo outro uma profunda indiferença -, era inconcebível para mim. Lá havia também a informação de que essa aparência despojada do grupo - jaqueta preta, calças jeans surradas e tênis velhos - era controlada rigidamente pelo Johnny, sendo impensável qualquer alteração.

Segundo diversas fontes consultadas - sentença esta muito útil para aqueles momentos em que não se está com saco para citar as referências -, vários foram os fatores causadores da briga entre Joey e Johnny. Um deles seria a diferença de posicionamento político. Johnny era republicano, conservador, simpatizava com Reagan e apoiou a guerra contra o Iraque (a do Bush pai). Joey, em contrapartida, teria uma posição oposta. Dizem também que Johnny "roubou" uma namorada do Joey, e isto é difícil de perdoar - acredito ser este um um motivo mais sólido.

As mesmas fontes que falam em causa passional para a contenda, mencionam que a música The KKK took my baby away foi escrita por Joey como um desabafo à sua perda amorosa. Não é preciso ser um gênio para imaginar quem estaria representando a Ku Klux Klan na canção...

Hoje, caminho pelo centro de Fortaleza. Cidade ensolarada, quente porém com uma brisa marinha apaziguadora. Suas ruas centrais são antigas, estreitas, algumas ainda com calçamento. Caminho cedo, antes das sete da manhã. Vou ao trabalho, estaciono o carro numa vaga particular - não é muito recomendável deixá-lo todos os dias na rua. Seguro minha pasta com a mão direita, está um pouco pesada, como sempre, pois costumo carregar mais coisas do que é necessário. Reconheço alguns transeuntes e moradores das casas. Não falo com eles, pois cada um anda ensimesmado. Os freqüentadores dos bares também são os mesmos, assim como os mendigos, que dormem pelas calçadas, ao desamparo. Não é o mais belo dos lugares, mas me é familiar.

Na rua estreita, poucos carros trafegam àquela hora, sendo possível caminhar à pé no meio da pista. Escolho a calçada de sempre - por ter um piso melhor. Aliás, nossa cidade é quase desprovida de calçadas, ocupadas que são - quando existem - por vendedores de todos os tipos. Enfim, caminho do meu lado predileto da rua. Vejo passar uma garota bonita - essa é a primeira vez que a encontro. Desvio de um pai segurando a mão de sua filhinha à caminho da escola. Evito a colisão com um poste e tento não pisar em alguns excrementos. À minha frente surge, então, uma criatura sui generis, que de vez em quando passa por mim a caminho do trabalho - penso eu.

Trata-se de um sujeito de estatura mediana cearense - quer dizer, para sua geração, que tem mais de quarenta, já que os jovens são bem mais altos. É magro, moreno, sem muitos cabelos - não chegando a ser calvo -, usa um bigodinho que, no passado, costumava chamar de "safado" e - o que me chamou a atenção desde a primeira vez que o vi - costuma vestir uma camiseta dos Ramones.

Bem, até aí nada de mais. Não é de se estranhar encontrar alguém usando uma camiseta de rock em Fortaleza. Quero dizer, também não chega a ser muito freqüente. Mas o que despertou minha curiosidade é o tipo em questão. Meu pre-conceito nunca me permitiria imaginar um sujeito daqueles vestindo uma camisa dos Ramones. Ele, definitivamente, não me parece o tipo certo. Vejam só, eu falando de tipos... Juro que, da primeira vez que o vi, pensei que a camisa tinha sido dada por alguém e que ele a usava por falta de opção - igual àquelas camisas de eleição, que vão todas para os mais pobres. Contudo, demonstrando meu equívoco, esbarrei com ele outras vezes pela rua, e o sujeito tinha uma verdadeira coleção. Assim, tive que rever minha opinião e comecei a considerá-lo como um fã.

Devo dizer, entretando, que existe um atenuante para a minha culpa. Um fator que ameniza um pouco o meu juízo preconceituoso acerca de sua aparência, mas que, por outro lado, exacerba uma forma diferente de preconceito. Num primeiro momento, julguei que alguém com aquelas características não poderia conhecer nem gostar dos Ramones, principalmente por um detalhe em especial: o cara andava com uma cruz do Shalom pendurada no pescoço.

Naquela manhã, quando o observei pela primeira vez, notei dois símbolos conflitantes - ao menos para mim - estampados no peito do sujeito. Uma camiseta de uma banda punk e a cruz representativa de um grupo carismático da igreja católica. O que poderia haver unido, numa única personalidade, duas idéias tão distintas? Para mim, o punk tinha aquele significado anti-religioso, anárquico, debochado, enquanto que o movimento carismático representava uma aproximação dos católicos com algumas das práticas dos evangélicos. Juntar tudo isso num ideal só me parecia, no mínimo, incongruente.

Quando notei que não era coincidência, que a cruz e o punk estavam sempre presentes, percebi que realmente tudo era intencional. Qual seria, então, a explicação? Talvez não haja nenhuma, pois o ser humano não precisa ser explicado, mas a mente curiosa não se contenta com esse tipo de abordagem, querendo sempre construir idéias onde talvez realmente não haja nada a ser compreendido.

Já que uma explicação se tornou inevitável, vou culpar o vilão mais à mão: a sociedade de massas. Eu tinha uma imagem dos Ramones totalmente distinta daquela que me foi mostrada no referido DVD que comprei. Assistindo-o, pude notar que o fator unificador da banda, o que os mantinha juntos - pelo menos no final -, era o dinheiro e um certo comodismo - do tipo que adia a aposentadoria daqueles que não sabem o que fazer depois de uma vida de trabalho. Onde eu julgava haver diversão e amizade, existia frieza e esforço profissional. Até mesmo as roupas deles tinham um caráter intencional, a fim de manter uma marca registrada. Deste modo, os meios de comunicação de massa criam ilusões que nos captam como armadilhas.

Da mesma forma que eu me iludi com a imagem dos Ramones criada pelos mass media, o sujeito da camiseta talvez nem saiba nada disso. Ou se sabe, releva, pois talvez seja mais inteligente que eu e entenda que, não importando a verdade dos fatos, a explicação racional, o que vale é apreciar o momento e recordar o que é bom. Assim, se para ele o som dos Ramones sempre agradou e se ele viveu bons momentos embalado pela voz de Joey, então não há razão para desgosto. Deixe esse tipo de observação para os mais azedos, como este que escreve.

Se os Ramones são apenas música, e não aqueles que as criaram - o que não deixa de ser verdade, pois a obra pode ser isolada de quem a cria, passando a ter existência própria -, então ele está certo. Não importam as idéias, os fatos históricos e nenhum outro tipo de bobagem intelectual. Apreciemos, então, os acordes simples. Que seja possível a convivência entre a música, enquanto música apenas, e qualquer tipo de filosofia ou crença. Que os preconceituosos, como aquele que observou o cara de bigode, se danem. Que seja bem-vindo até um novo integrante: apresento-lhes o Shalom Ramone. Hey ho, let's go.

Jaguadarte

Lembro-me de um colega de faculdade, o Shimaba, um cara gente boa: japonês com visual meio punk, cabelo espetado, fala engraçada e estudante de física na área de raios cósmicos (vê que estranho!). Ele foi um aluno, até onde sei, brilhante (já estava terminando o mestrado em matemática enquanto eu ainda pelejava na graduação - e entramos na mesma época), mas nem por isso deixava de fazer tudo o que gostava: era fanático por rock and roll e fazia parte de uma banda bastante barulhenta, cujo nome, salvo engano, era "Quasímodo Traça Jaguadarte".

Nessa altura do campeonato, não sei se o nome era exatamente esse, mas, de hoje em diante, passa a ser, pois é assim que ficou registrado em minha memória e deve haver um bom motivo para isso. Bem, dá para imaginar que esse nome sempre despertou minha curiosidade mas, por incrível que pareça, nunca fiz a pergunta mais clichê que existe para alguém que tem uma banda: "De onde surgiu o nome?". Na verdade, esse é o tipo de pergunta intrigante que jamais me dei ao trabalho de responder, pois às vezes os mistérios dos nomes são mais interessantes que as respostas. Assim sendo, naquela época fiquei achando o nome engraçado e apenas isso.

"Quasímodo Traça Jaguadarte"... Bem, vamos ver que tipo de interpretação essas palavras despertam em mim. O Quasímodo todos nós conhecemos, apesar que nem sempre pelo seu nome verdadeiro. Ele é o corcunda que habitava a Catedral de Notre Dame no livro de Victor Hugo. Era um sujeito que, devido à sua deformidade, vivia isolado do convívio humano. Já o Jaguadarte, após uma aula na faculdade, descobri ser um personagem de Lewis Carrol no livro Alice no País do(s) Espelho(s). Tenho a impressão que já havia pesquisado isto antes na Internet, mas devo ter esquecido quase no mesmo instante.

Na história de Alice, traduzida - ou transportada para o português - por Augusto de Campos, o Jaguadarte era um monstro que andava apavorando o pessoal daquele lugar e acabou morto por um guerreiro e sua espada. O interessante seria imaginar esse guerreiro como sendo Quasímodo. É o oposto do que temos em mente ao lermos uma história de cavalaria. Normalmente o herói é forte, faz sucesso com as mulheres e tudo o mais. Neste caso, o matador de monstros seria um pária deformado e não um Siegfried ungido pelos deuses. É, no mínimo, uma abordagem irônica e, com certeza, mais condizente com a nossa época.

Nunca perguntei o significado do nome da banda e talvez jamais ouça a explicação da boca de algum de seus componentes, mas estou satisfeito com a imagem que ela me desperta e, após tantos anos, acho que isso me basta.

A propósito, existe um ensaio interessante sobre tradução (escrito por Tatiana F. Rodrigues) utilizando justamente a transposição de Jabberwocky para Jaguadarte, realizada por Augusto de Campos, em http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=946.



Jabberwocky

`Twas brillig, and the slithy toves

Did gyre and gimble in the wabe:
All mimsy were the borogoves,
And the mome raths outgrabe.

"Beware the Jabberwock, my son!
The jaws that bite, the claws that catch!
Beware the Jubjub bird, and shun

The frumious Bandersnatch!"

He took his vorpal sword in hand:

Long time the manxome foe he sought --
So rested he by the Tumtum tree,
And stood awhile in thought.

And, as in uffish thought he stood,
The Jabberwock, with eyes of flame,
Came whiffling through the tulgey wood,
And burbled as it came!

One, two! One, two! And through and through
The vorpal blade went snicker-snack!
He left it dead, and with its head
He went galumphing back.

"And, has thou slain the Jabberwock?
Come to my arms, my beamish boy!
O frabjous day! Callooh! Callay!'
He chortled in his joy.

`Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe;
All mimsy were the borogoves,
And the mome raths outgrabe.


Lewis Carroll
[from Through the Looking-Glass and What Alice Found There, 1872]



JAGUADARTE


Era briluz. As lesmolisas touvas

roldavam e reviam nos gramilvos.

Estavam mimsicais as pintalouvas,

E os momirratos davam grilvos.

“Foge do Jaguadarte, o que não morre!

Garra que agarra, bocarra que urra!

Foge da ave Fefel, meu filho,

e corre do frumioso Babassura!”

Ele arrancou sua espada vorpal

e foi atrás do inimigo do Homundo.

Na árvore Tamtam ele afinal

Parou, um dia, sonilundo.

E enquanto estava em sussustada sesta,

Chegou o Jaguadarte, olho de fogo,

Sorrelfiflando atraves da floresta,

E burbulia um riso louco!

Um, dois! Um, dois! Sua espada mavorta

Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante!

Cabeça fere, corta e, fera morta,

Ei-lo que volta galunfante.

“Pois então tu mataste o Jaguadarte!

Vem aos meus braços, homenino meu!

Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!"

Ele se ria jubileu.

Era briluz. As lesmolisas touvas

Roldavam e relviam nos gramilvos.

Estavam mimsicais as pintalouvas,

E os momirratos davam grilvos.

Lewis Carroll

[tradução Augusto de Campos]

domingo, 16 de novembro de 2008

A katharsis em "A metamorfose" de Franz Kafka


INTRODUÇÃO

É, sem dúvida, uma tarefa bastante desafiadora refletir acerca de um fenômeno há tantos séculos conhecido, mas, ao mesmo tempo, tão repleto de nuances e interpretações divergentes quanto a katharsis. Além disso, a responsabilidade torna-se ainda maior quando o objeto de estudo é uma das obras fundamentais de um dos escritores mais importantes do século XX – de acordo com pessoas tão díspares quanto Harold Bloom e Jorge Luís Borges. Trata-se, assim, de analisar a katharsis no livro “A Metamorfose”, de Franz Kafka, escrito no alvorecer da Primeira Guerra Mundial – se é possível falar de um alvorecer tão negro –, época em que o ser humano vivia cercado de incertezas e de forças opressoras. Existiria alguma semelhança com o início do século XXI?


AS VÁRIAS ABORDAGENS DO FENÔMENO KATHARSIS

Na poética de Aristóteles

É recorrente a referência ao famoso capítulo VI da “Poética” de Aristóteles, onde o filósofo grego menciona a catarse provocada no público pela apresentação das tragédias:

É a tragédia a representação de uma ação grave, de alguma extensão e completa, em linguagem exornada, cada parte com o seu atavio adequado, com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando pena e temor, opera a catarse própria dessas emoções. (Aristóteles, 1997, pg. 24)

Assim, Aristóteles enuncia a clássica definição do modo pelo qual a tragédia opera uma reação catártica em seu público: pela inspiração de pena e temor. O receptor do fenômeno estético se envolveria com a trama e seus eventos, sofrendo alterações – ao final do espetáculo ou da leitura do texto –, em relação ao seu estado inicial. Que mudanças são essas? Quais as conseqüências da exposição do público à tragédia? Que transformações poderiam advir das percepções individuais? São questões ainda abertas e abordadas por diversos teóricos.

Górgias

O sofista siciliano Górgias – século V a.C. – foi uma figura de bastante prestígio na Grécia antiga devido à sua eloqüência, chegando até mesmo a fundar uma escola de sucesso em Atenas. Enquanto Aristóteles refletia acerca da liberação da psique ocorrida no público das tragédias, influenciando no estado de ânimo da platéia, Górgias preocupava-se com a “preparação do ouvinte” de um discurso e com o esforço necessário para o convencimento – já que se tratava de um mestre da retórica –, atingido através do pathos, jogo com as paixões, e do ethos, a credibilidade depositada no orador. Górgias explica que “o prazer estético dos afetos provocados pelo discurso” pode ocasionar, através do fenômeno catártico, mudanças de crença, influência em processos judiciais e alterações na alma.

Jauss

Hans Robert Jauss, teórico alemão da estética da recepção, em seu artigo “O prazer estético e as experiências fundamentais da poiesis, aisthesis e katharsis”, faz um extenso levantamento teórico acerca do prazer estético, coletando impressões e contribuições de diversos estudiosos, indo de Aristóteles e Górgias até Freud, Giesz e Blumenberg, entre outros. Sobre os dois filósofos antigos, houve uma ligeira menção nos tópicos anteriores. Quanto aos mais recentes, existem algumas observações a serem realizadas.

De acordo com o artigo de Nathalia Sá Cavalcante, “Considerações a respeito do ‘prazer estético’ para Hans R. Jauss”, Ludwig Giesz não aceitaria a contemplação distanciada do objeto de prazer, sendo, para ele, o fruidor um co-produtor do referido objeto. Assim, o prazer estético se realizaria na “relação dialética do prazer de si no prazer do outro”, no sentido de participação e apropriação, oscilando o agente receptor entre “uma contemplação desinteressada e uma participação emancipadora”.

Hans Blumenberg trata da existência de prazer estético diante do feio, do terrível, do cruel e do disforme que, em princípio, seriam incapazes de produzir uma relação de prazer. Esse fenômeno ocorre devido ao distanciamento do sujeito, o qual se percebe como não afetado e consegue fruir a emoção trágica sem vivenciá-la pessoalmente, mas através de sua representação artística.

Freud fala da “necessidade antropológica do herói”, onde leitores ou espectadores podem imaginar-se importantes, entregar-se a emoções recalcadas, as quais seriam incapazes de sentir em sua vida cotidiana, sem correr nenhum risco, já que se trata de outro sofrendo. Do mesmo modo, percebem estar participando de um jogo inofensivo à própria segurança. Seria, assim, o prazer estético garantido pelas sensações de alívio e proteção.

A abordagem de Jauss baseia-se na união dos pensamentos de Górgias e Aristóteles, sendo que o prazer provocado pelo discurso ou pela poesia seria capaz de levar o ouvinte e o espectador a transformar suas convicções e liberar sua psique. Tem-se, assim, sua consagrada definição de katharsis:

(...) aquele prazer dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia, capaz de conduzir o ouvinte e o espectador tanto à transformação de suas convicções quanto à liberação de sua psique. Como experiência estética comunicativa básica, a katharsis corresponde tanto à tarefa prática das artes como função social – isto é, servir de mediadora, inauguradora e legitimadora de normas de ação –, quanto à determinação ideal de toda arte autônoma: libertar o espectador dos interesses práticos e das implicações de seu cotidiano, a fim de levá-lo, através do prazer de si no prazer no outro, para a liberdade estética de sua capacidade de julgar.

Jauss manifesta, então, que a função social da experiência estética – ou função comunicativa –, a katharsis, seria um fenômeno intersubjetivo, caracterizado pela “anuência ao juízo exigido pela obra, ou pela identificação com normas de ação predeterminadas e a serem explicitadas”. Percebe-se, também, a presença do pensamento de Giesz na definição elaborada por Jauss, onde é feita referência ao prazer de si no prazer do outro, que conduziria à liberdade estética da capacidade de julgar.

Trabalhos apresentados no Colóquio Internacional Katharsis

Ricardo Corrêa Barbosa, em seu trabalho “Catarse e comunicação: sobre Jauss e Kant”, reitera algumas das acepções exibidas anteriormente, tais como o poder da katharsis para transmitir normas de ação e o potencial emancipador da experiência estética. Segundo ele, a transmissão de normas de ação ocorre através da identificação receptor-herói, sendo criado um espaço de jogo que alivia o sujeito das pressões, ou, como diria Schiller, seria a “liberação das pressões cotidianas proporcionada por um estado lúdico” e, ainda, que “é pela beleza que se vai à liberdade”. A adesão do outro, gerando uma nova norma, seria um fator de socialização.

A mexicana Maria del Carmen Trueba Atienza faz uma crítica da interpretação intelectualista da catarse, cujo principal expoente é Leon Golden. A katharsis seria atingida através de um processo de “clarificação intelectual”, ou seja, simplesmente pelo entendimento racional do processo de imitação. Ao contrário do que prega Golden, Carmen expõe a relevância de outro componente no fenômeno catártico: a apreciação do objeto por si mesmo, pela beleza de sua criação ou execução. Segundo Jonathan Lear, “o prazer da tragédia não é cognitivo, mas mimético”, derivando da identificação ou do reconhecimento do objeto imitado. Se a identificação não for possível, pode-se apreciá-lo como representação, pela maestria com que foi executado e pelo prazer que nos oferece.

Fernando Ruy Puente, em seu ensaio “A katharsis em Platão e Aristóteles”, enumera as diversas interpretações para katharsis, que seriam: a) moralista ou didática, levando ao aperfeiçoamento moral do público através da tragédia; b) amadurecimento emocional e fortalecimento através da tragédia; c) moderação, ou seja, purificação com a busca da mediania; d) purgativa ou patológica (ou abordagem médica) que seria o expurgo das emoções dos espectadores; e) intelectiva, para a qual a tragédia propiciaria uma iluminação intelectual e f) dramática, ou estrutural, onde a purificação ocorre no interior do drama e não no espectador.

Essa última acepção é recorrente nos estudos literários, onde parece sempre existir a possibilidade de uma abordagem estruturalista em que são analisados fenômenos internos à obra. Esse método será um dos utilizados neste trabalho de análise do livro “A Metamorfose”, estando aliado ao estudo da catarse no elemento receptor, o leitor.

Exemplos cotidianos

Tomando como base a abordagem médica, ou purgativa, do fenômeno catártico, é possível observar a ocorrência da katharsis em várias situações cotidianas, tais como eventos esportivos, shows musicais e apresentações cinematográficas. É possível imaginar melhor razão do que a purificação da alma para levar a um jogo de futebol milhares de pessoas? Quando o time vence, é comum mencionar: “saí de alma lavada”. Não se trata, neste caso, de uma criação estética como a tragédia grega, mas é inegável que ocorrem situações inusitadas de competição e emoção numa partida, as quais podem levar a essa “liberação da psique”. Além disso, não é à toa que se tem falado por tanto tempo em “futebol arte” – até mesmo o historiador marxista Eric Hobsbawm chegou a escrever sobre isso no livro “A Era dos Extremos” –, pois é notório que nos grandes espetáculos futebolísticos alguns atletas superdotados parecem atingir dimensões sobre-humanas. Não seria este caso um exemplo claro da necessidade do herói mencionada por Freud?

Não ocorreria esse mesmo fenômeno de liberação e apreciação em grandes shows musicais, como de bandas de rock pesado, onde muitas vezes não se pode falar exatamente de beleza harmônica e sofisticação das letras. O que levaria as pessoas a apreciarem algo aparentemente feio e violento? Da mesma forma existe, a apreciação cinematográfica. Qual de nós nunca aceitou o jogo sugerido por um filme e não embarcou em sua fantasia, solidarizando-se com o protagonista, ou herói, e não saiu com uma tremenda sensação de alívio? Que dizer, então, do prazer existente nos filmes de horror, onde há excessos de sangue, vísceras e fenômenos sobrenaturais? Parece ser a apreciação do feio já mencionada desde a Grécia antiga.

E em Kafka, a katharsis levaria a uma cura médica? O leitor conclui o texto com uma sensação de alma lavada ou sente o peso do sofrimento de Gregor Samsa? Existe um reconhecimento intelectual da realidade que o escritor tcheco que nos mostrar? É possível, ainda que sem compreender os objetivos do autor, apreciar a beleza estética de “A metamorfose”? Vejamos, então.



ANÁLISE ESTRUTURAL DA KATHARSIS NO LIVRO "A METAMORFOSE", DE FRANZ KAFKA

O estudo de um fenômeno como a katharsis dentro da própria obra literária, de sua estrutura interior, é uma das possíveis formas de análise à disposição do teórico. Questões sobre em que momento ocorre a catarse no texto, porque ela acontece e que implicações ela traz às personagens, podem ser respondidas utilizando os recursos dessa abordagem. Pode-se perguntar, ainda, se teria o fenômeno catártico provocado mudanças nas personagens e no ambiente que as cerca. Faremos algumas considerações.

A transformação inicial, inversão do clímax

Imaginando ser possível classificar “A metamorfose” como um conto do gênero fantástico, percebe-se logo uma disparidade entre a história criada por Kafka e o padrão descrito normalmente pela literatura. Enquanto que na maioria dos contos tudo converge para o clímax final, a metamorfose de Gregor Samsa num inseto ocorre no início do texto, de maneira inexplicada. Assim, o leitor já encontra a personagem principal transmutada num bicho, e é a partir daí que o enredo começa a ser construído. A metamorfose de Gregor passa a provocar mudanças nos componentes de sua família. É possível verificar, deste modo, o fenômeno catártico como fonte de mudança, como gerador de uma situação nova. É válido lembrar que, mesmo tendo sofrido com a situação de Gregor, a família mostrou sempre um certo distanciamento e, no final, parece ter ocorrido um efeito purgativo das sensações.

Fontes de opressão sobre Gregor Samsa

Gregor é o protótipo do oprimido. Ele sente a pressão de seu trabalho, com um patrão tirânico cercado por funcionários subservientes, desprovidos de coluna vertebral, como ele mesmo diz. A família também o oprime, pois ele é, em princípio, o único qualificado para trabalhar e proporcionar o sustento de todos. O dever de pagar as dívidas do pai o obriga a permanecer vinculado a uma instituição na qual ele não acredita, representando uma farsa cotidiana, ou seja, seu papel social. O que não dizer, então, da opressão de uma sociedade localizada no centro de um conflito premente? O livro foi escrito em 1912 e o clima belicoso devia permear todo o tecido social. Não seria sua transformação em inseto um exemplo de mutação gerada pelo efeito catártico de liberação da psique perante a opressão de que era vítima? É válido lembrar que a mudança ocorreu após “sonhos intranqüilos”. Não seriam esses sonhos uma tragédia que, através da identificação da personagem com sua própria história, teria ocasionado a mudança?

As alterações ocorridas na família, verdadeira metamorfose

A concepção de katharsis adotada por Jauss relaciona o prazer estético à liberação da psique e à transformação das convicções prévias. Se existe prazer no feio graças à identificação e ao distanciamento, não é possível que a intimidade da família com Gregor e sua aparente frieza perante seu estado sejam sinais das conseqüências provocadas por um efeito catártico? Quando Kafka fala em metamorfose, estaria ele referindo-se à Gregor ou a seus parentes? A desgraça ocorrida com Gregor gerou diversas transformações em seus familiares, tais como o fortalecimento e rejuvenescimento do pai, a disposição da mãe para trabalhar e o amadurecimento da irmã. Eles parecem ter sofrido uma ação transformadora decorrente da mudança de Gregor. Ironicamente, o efeito mais contundente da metamorfose parece ter sido a passagem de figura essencial na casa a um verdadeiro peso morto que, enquanto vivo, atrapalhava o progresso do restante da família. Assistir à queda de Gregor funcionou, deste modo, como um agente de mudanças para seus familiares que, inclusive, mostram-se mais felizes no final do livro do que pareciam estar no início deste.

Seria tudo um sonho?

Numa obra rica, na qual o leitor termina sua angustiante tarefa apenas com indagações, desprovido de respostas, uma questão desponta elevando ainda mais o nível de desconforto e estranheza: seria tudo um sonho de Gregor? Quando Kafka menciona, no primeiro parágrafo do livro, que Gregor despertou de sonhos intranqüilos transformado num inseto, devemos acreditar em suas palavras? Ou talvez devamos duvidar justamente por que ele assim o afirmou? Mesmo a história sendo tão detalhada e indicando a passagem do tempo em meses, não estaria o personagem principal sonhando ter acordado? Essa indagação parece impossível de ser respondida, mas, com certeza, ela traz consigo uma nova possibilidade de interpretação. A vida opressora de Gregor poderia ter gerado nele uma ação transformadora impossível de ser concretizada – diferentemente do caso do operário em construção, de Vinícius de Moraes, capaz de lutar contra o poder estabelecido – no mundo real, já que ele não teria forças e disposição para o combate. Essa ação iria se manifestar, assim, em seu sonho, no qual ocorre a transformação liberadora de si e de sua família, a qual se torna independente dele. Para Gregor, é válido ressaltar, a única liberação possível é a morte. Deste modo, a transformação e a liberação de Gregor vêm da sua consciência de oprimido e se manifestam no único plano possível: o onírico.


O EFEITO CATÁRTICO NO LEITOR

Após esses breves comentários sobre que eventos catárticos – juntamente com suas conseqüências – poderiam ter ocorrido dentro do texto de “A metamorfose”, é necessário verificar o que acontece ao leitor da obra, que tipo de recepção esse conto fantástico vai ter de seu público.

Um convite para jogar

Como todo texto literário em particular, ou criação estética em geral, “A metamorfose” convida o incauto leitor para jogar. Se ele aceitar suas regras, por mais estranhas que estas sejam no universo kafkiano, este poderá participar como ator de uma das mais surpreendentes e ricas criações artísticas do século XX.

Para os formalistas russos do início do século passado, a riqueza de um livro podia ser verificada pela sensação de estranhamento derivada de sua leitura. Se este é um critério universalmente válido ou não, ainda que pareça ser um dos bons, o fato é que, na obra de Kafka, a estranheza parece ser algo recorrente.

O leitor, acostumado com certas práticas utilizadas pelos escritores e consideradas “normais”, ou melhor, comuns, sente um choque ao deparar-se com a total ausência da relação causa/efeito ou com o absurdo presente nas obras de Kafka. Entrar em seu jogo passa a ser, então, um desafio muito maior.

Empatia

Desafio aceito, a identificação com Gregor é inevitável. Ele parece ser a figura oprimida padrão: alma nobre, repleto de amor filial e fraternal, responsável, dedicado e altruísta. Estas são algumas de suas características pessoais facilmente verificáveis pela leitura do texto. Gregor aparece como idealizado justamente para fazer contraposição a uma família voltada para o utilitarismo, para dizer o mínimo, e a um mundo cruel, injusto e perverso. Ele passa a ser a vítima ideal, massacrado, pisado, transformado, por fora, num inseto, mas conservando, por dentro, o que há de melhor no ser humano. Assim é Gregor, escolhido para simbolizar o sofrimento humano nesse mundo de Kafka.

Ação transformadora

Da identificação com o herói, guardando o devido distanciamento, que sentimentos e transformações podem ser gerados num leitor-padrão e que mudanças ele pode provocar em seu ambiente?

A leitura de “A metamorfose” conduz o sujeito ao contato com o feio, com o sofrimento, com o repugnante, e, ainda assim, o faz sentir uma grande empatia por tudo isso. Segundo as teorias sobre catarse, esses sentimentos despertariam no público uma sensação de alegria – ou de alívio – por não estarem eles na situação do protagonista, sabendo-se, assim, protegidos. Ao mesmo tempo, resta um sabor amargo na boca provocado pela injustiça do destino de Gregor e pela insensibilidade de sua família.

Quando Gregor morre, parece que todos se libertam e que esta era, mediante os acontecimentos, a melhor saída possível. A irmã talvez estivesse certa sobre a necessidade de seu desaparecimento e ele, sem dúvida, compartilhava dessa opinião. Quanto ao significado do seu sofrimento, não é possível falar em redenção, porque não há culpa nele, mas sim nos outros.

A morte de Gregor traz um misto de alívio e tristeza ao leitor. Essa ambigüidade é quebrada, no entanto, pela indignação causada pela demonstração de felicidade por parte da família – decorrente da liberação de um pesado fardo. Seria possível criticar severamente seus parentes ou estaríamos esquecendo de que as pessoas fazem isso com mais freqüência do que gostamos de lembrar. Quem pode garantir que não há alívio quando alguém há muito doente e dependente se vai? O que dizer, então, das pessoas abandonadas simplesmente por deixarem de serem úteis, assim como Gregor?

Talvez a ação transformadora ocasionada pela identificação com Gregor seja a tomada de consciência dos fatores que oprimem o homem na sociedade moderna e as convenções que o aprisionam. Possivelmente o que Gregor nos ensina é a valorizar os laços afetivos, fugindo da lógica do utilitarismo vigente no mundo capitalista e corporativo. O destino de Gregor nos conduziria a um universo de relações mais humanas, um lugar no qual talvez não fôssemos esmagados como insetos.


REFERÊNCIAS

AMORA, A. S. Introdução à teoria da literatura. São Paulo: Cultrix, 2006.

ARISTÓTELES. Poética. In: A poética clássica. Tradução Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1997.

BACKES, M. A teia kafkiana. EntreLivros, São Paulo, ano 3, n. 27, p. 36-39.

BLOOM, H. O cânone ocidental: Os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

BORGES, J. L. Kafka e seus precursores. In: Obras completas de Jorge Luis Borges, volume 2. São Paulo: Globo, 2000.

DUARTE, R. [et al.] (org.). Kátharsis: reflexos de um conceito estético. Belo Horizonte: C/Arte, 2002.

JAUSS, H. R. O prazer estético e as experiências fundamentais da poiesis, aisthesis e katharsis. In: LIMA, L (org.). A literatura e o leitor - textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

KAFKA, F. A metamorfose. Tradução e posfácio Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

NATHALIA, S. C. Considerações a respeito do “prazer estético” para Hans R. Jauss. Disponível em: http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/imago/site/recepcao/textos/natalia.htm. Acesso em: 30 out. 2008.

ZILBERMAN, R. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 2004.

sábado, 15 de novembro de 2008

Biblioteca - Os Tambores de São Luís 2

Bem, já faz algum tempo que concluí a leitura de "Os Tambores de São Luís" e devo dizer que minhas impressões iniciais não foram alteradas. O livro manteve sua força até o final e foi justamente nesse ponto que o autor nos entregou a última surpresa. A trama foi constituída magistralmente, convergindo para um conclusão surpreendente - ao menos para mim -, que mostra toda o engenho do escritor.

A história, alternando flashbacks com a caminhada de Damião em direção ao local de nascimento de seu trineto, se estende através de centenas de páginas cheias de detalhes e descrições de ambientes, pessoas e eventos. A saga de Damião foi exibida minuciosamente, mostrando seus momentos de glória e também suas inúmeras quedas. Josué Montello, durante todo o livro, demonstra seu apreço e sua admiração pela personagem principal e a coloca num patamar de superioridade - moral e intelectal - em relação a todas as outras.

O livro é, sem dúvida, um dos melhores que já li e despertou em mim o desejo de conhecer outras obras do autor - como "Cais da Sagração" - e também de visitar os muitos locais de São Luís mencionados no texto - a exemplo do largo de São Pantaleão, de onde vinha o som dos tambores que perpassa toda a vida de Damião na capital maranhense.

Para não ficar apenas nos elogios, guardei um pequeno senão que ficou martelando em minha mente por todo o tempo em que estive a ler "os tambores". Pareceu-me que Damião, das alturas de sua superioridade, perde um pouco de sua humanidade, adquirindo um perfil um tanto quanto messiânico. Ele teria algo a ver com "o escolhido", um sujeito ungido, marcado pela natureza, pelo destino ou por Deus para conduzir seu povo à liberdade, algo como um Moisés cor de ébano. Vale ressaltar que Hollywood gosta muito deste tipo de personagem, pois a indústria do cinema utiliza bastante o herói pré-destinado em seus filmes - basta ver o Neo, de Matrix. Tal espécie de salvador é comum também em outras culturas, como a portuguesa, onde a espera por Dom Sebastião é largamente conhecida.

A magnanimidade de Damião às vezes ultrapassa os limites do crível e me deixou impaciente em diversos momentos, parecendo-me que o personagem foi idealizado em excesso a fim de enaltecer as qualidades do seu povo oprimido. Afora esse particular, a leitura se mostrou uma grande e rica experiência literária, das melhores que já pude vivenciar.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O aniversário em "A última crônica", de Fernando Sabino, e as drogas, no texto de (?)

Aviso: este texto foi construído tendo como premissa o fato da crônica "Diga não às drogas" ter sido escrita por Luís Fernando Veríssimo, fato posteriormente negado pelo autor e amplamente difundido na Internet. Assim, leia "autor desconhecido" quando surgir o nome do escritor gaúcho. As duas obras em análise podem ser encontradas nos posts mais recentes.

O texto de Fernando Sabino apresenta uma verdadeira compilação teórica dos elementos constitutivos do gênero crônica. Ele se utiliza, no primeiro parágrafo, da metalinguagem, ao mencionar que está adiando o momento da escrita. A seguir, enumera algumas características da crônica, tais como: busca do pitoresco, do irrisório, no cotidiano de cada um; captação de aspectos humanos na vida diária; vislumbre do circunstancial, do episódico, do acidental; o escritor como espectador, captando a essência de um fato, com o olhar fora de si.

Em “A última crônica”, Fernando Sabino acompanha uma celebração de aniversário atípica. O cronista observa, em um bar, uma família de pretos – um casal e sua filhinha – a comemorar o aniversário da menina. A estranheza principia pelo local incomum. Um botequim não é o ambiente tradicional para este tipo de festa. Essas comemorações normalmente ocorrem nas casas das pessoas ou em locais alugados com essa finalidade. Há sempre muita comida, bebida, brincadeiras, presentes e algazarra. No caso deste texto, pelo contrário, os três estão sozinhos – apenas o núcleo da família –, meio deslocados e constrangidos. Devido a seus parcos recursos, podem apenas comprar um pequeno pedaço de bolo e um refrigerante; as velas foram trazidas na bolsa da mãe. A despeito de suas condições materiais, a menina encara sua celebração com expectativa e alegria, como ocorreria em qualquer festa de aniversário. Para ela, tudo aquilo é novo e o olhar da criança consegue impor magia à dura realidade. É interessante mencionar que o autor afirma não haver ninguém, além dele, a observar o trio. Este comentário é uma indicação do olhar diferenciado do cronista, sujeito capaz de observar detidamente uma cena cotidiana e retirar dela algo geral, profundo e belo. Outro ponto que salta aos olhos é o fato das velas serem em número de três, assim como os componentes da família e, ao contrário destes, terem a cor branca. Possivelmente não se trata apenas de coincidência. Quanto ao desenrolar da celebração, é comovente perceber que os pais consideram aquele momento extremamente importante, a despeito da simplicidade da cerimônia. Assim, não é a abundância material que se destaca no trio, mas a grandeza de seus sentimentos humanos: a mãe acaricia a filha e o pai observa o ambiente que os circunda, orgulhoso por poder proporcionar este momento de felicidade à menina. Ao final, o preto, de início titubeante, acanhado, encontra o olhar do autor, o sustenta e emite um sorriso. Novamente o que há de bom no ser humano surge, representado pela pureza desse sorriso.

Na crônica “Não às drogas”, de Luís Fernando Veríssimo, o autor brinca – com sua peculiar ironia e seu senso de humor cortante – com a indústria musical ao comparar seus meios de aliciamento aos utilizados pelos traficantes de drogas. Aliás, as drogas que dão título ao texto são os gêneros musicais criados para o entretenimento das massas e enriquecimento dos donos de gravadoras, músicos, emissoras de rádio e lojas especializadas. O processo pelo qual o usuário passa até chegar ao fundo do precipício é descrito minuciosamente. No início, alguém oferece o produto para que você experimente. Poderia ser, por exemplo, maconha. No caso, era um sertanejo de raiz. Após a iniciação, o drogado passa a consumir com alguma freqüência, o que o faz comprar pela primeira vez. O narrador menciona ter adquirido um disco sertanejo. Na seqüência, começa a existir a variação, com o consumo de diferentes drogas. Entram em cena o pagode e o axé. Daí passa-se às drogas mais pesadas e o autocontrole começa a ir embora. O antigo usuário agora principia a ter papel ativo na indústria. Poderia ser um “avião”, um pequeno traficante ou um componente de grupo de pagode. O próximo passo é a queda, quando tudo na vida passa a ser secundário, a auto-estima não mais existe e o universo pessoal fica centralizado no vício. O doente não consegue reconhecer a si mesmo, sendo seu comportamento algo impensável em tempos anteriores. A seguir, o narrador indica que existe uma cura, um tratamento. A clínica de desintoxicação ministra doses potentes de medicamentos, como jazz, MPB e até música clássica.

Nessa crônica, Luís Fernando Veríssimo utiliza a comparação com o que existe de pior na sociedade, que é o submundo criminoso do tráfico de drogas, para manifestar seu descontentamento com a violência cultural a que a indústria musical nos submete. Ele se sente agredido e utiliza os artifícios do humor e da ironia para tentar nos mostrar como somos manipulados por esses organismos em sua incansável busca pelo lucro rápido. Pode-se extrair, também, a idéia de que poderíamos ser agraciados com um conteúdo de melhor qualidade, caso os interesses desses grupos não estivessem tão voltados à criação de distrações imediatas e extremamente lucrativas.

Tendo em mente os critérios utilizados por Fernando Sabino para descrever o gênero crônica, podemos encontrar pelo menos um deles no texto de Luís Fernando Veríssimo: a observação aguda (no caso, de um fenômeno social). O autor estaria olhando para fora de si, analisando eventos que ocorrem cotidianamente e extraindo deles regras gerais, relações constantes entre eventos aparentemente não interligados. Pode-se, contudo, encontrar várias diferenças de conteúdo e estilo entre os autores, manifestadas em seus textos. A crônica de Sabino apresenta um clima comovente, que poderia terminar em melancolia, mas acaba num flash de grande beleza, enquanto Veríssimo utiliza-se de humor e acidez. O primeiro analisa três indivíduos, enquanto o segundo, mesmo através de um tom confessional, generaliza. Se a fórmula de Sabino para descrever uma crônica fosse rígida, inflexível, talvez tivéssemos que excluir o texto de Luís Fernando Veríssimo. Contudo, acredito que o gênero em questão não se esgota na descrição bem elaborada de Fernando Sabino, sendo generoso o bastante para aceitar características que, sem dúvida alguma, o enriquecem.

A última crônica

A última crônica

Fernando Sabino

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.

A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção de bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.

A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guará-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

Não às drogas


DIGA NÃO ÀS DROGAS!!!

Ao que tudo indica, texto falsamente imputado a Luís Fernando Veríssimo

(copiado de http://www.geocities.com/sociedadecultura/luizfernandoverissimonaodrogas.html)

Tudo começou quando eu tinha uns 14 anos e um amigo chegou com aquele papo de "experimenta, depois, quando você quiser, é só parar..." e eu fui na dele. Primeiro ele me ofereceu coisa leve, disse que era de "raiz", "natural" , da terra", que não fazia mal, e me deu um inofensivo disco do "Chitãozinho e Xororó" e em seguida um do "Leandro e Leonardo". Achei legal, coisa bem brasileira; mas a parada foi ficando mais pesada, o consumo cada vez mais freqüente, comecei a chamar todo mundo de "Amigo" e acabei comprando pela primeira vez.

Lembro que cheguei na loja e pedi: - Me dá um CD do Zezé de Camargo e Luciano. Era o princípio de tudo! Logo resolvi experimentar algo diferente e ele me ofereceu um CD de Axé. Ele dizia que era para relaxar; sabe, coisa leve... "Banda Eva", "Cheiro de Amor", "Netinho", etc. Com o tempo, meu amigo foi oferecendo coisas piores: "É o Tchan", "Companhia do Pagode", "Asa de Águia" e muito mais. Após o uso contínuo eu já não queria mais saber de coisas leves, eu queria algo mais pesado, mais desafiador, que me fizesse mexer a bunda como eu nunca havia mexido antes, então, meu "amigo" me deu o que eu queria, um Cd do "Harmonia do Samba". Minha bunda passou a ser o centro da minha vida, minha razão de existir. Eu pensava por ela, respirava por ela, vivia por ela! Mas, depois de muito tempo de consumo, a droga perde efeito, e você começa a querer cada vez mais, mais, mais . . . Comecei a freqüentar o submundo e correr atrás das paradas. Foi a partir daí que começou a minha decadência. Fui ao show de encontro dos grupos "Karametade" e "Só pra Contrariar", e até comprei a Caras que tinha o "Rodriguinho" na capa.

Quando dei por mim, já estava com o cabelo pintado de loiro, minha mão tinha crescido muito em função do pandeiro, meus polegares já não se mexiam por eu passar o tempo todo fazendo sinais de positivo. Não deu outra: entrei para um grupo de Pagode. Enquanto vários outros viciados cantavam uma "música" que não dizia nada, eu e mais 12 infelizes dançávamos alguns passinhos ensaiados, sorriamos fazíamos sinais combinados. Lembro-me de um dia quando entrei nas lojas Americanas e pedi a coletânea "As Melhores do Molejão". Foi terrível!! Eu já não pensava mais!! Meu senso crítico havia sido dissolvido pelas rimas "miseráveis" e letras pouco arrojadas. Meu cérebro estava travado, não pensava em mais nada. Mas a fase negra ainda estava por vir. Cheguei ao fundo do poço, no limiar da condição humana, quando comecei a escutar "Popozudas", "Bondes", "Tigrões", "Motinhas" e "Tapinhas". Comecei a ter delírios, a dizer coisas sem sentido. Quando saia a noite para as festas pedia tapas na cara e fazia gestos obscenos. Fui cercado por outros drogados, usuários das drogas mais estranhas; uns nobres queriam me mostrar o "caminho das pedras", outros extremistas preferiam o "caminho dos templos". Minha fraqueza era tanta que estive próximo de sucumbir aos radicais e ser dominado pela droga mais poderosa do mercado: a droga limpa.

Hoje estou internado em uma clínica. Meus verdadeiros amigos fizeram única coisa que poderiam ter feito por mim. Meu tratamento está sendo muito duro: doses cavalares de Rock, MPB, Progressivo e Blues. Mas o meu médico falou que é possível que tenham que recorrer ao Jazz e até mesmo a Mozart e Bach. Queria aproveitar a oportunidade e aconselhar as pessoas a não se entregarem a esse tipo de droga. Os traficantes só pensam no dinheiro. Eles não se preocupam com a sua saúde, por isso tapam sua visão para as coisas boas e te oferecem drogas.

Se você não reagir, vai acabar drogado: alienado, inculto, manobrável, consumível, descartável e distante; vai perder as referências e definhar mentalmente.

Em vez de encher a cabeça com porcaria, pratique esportes e, na dúvida, se não puder distinguir o que é droga ou não, faça o seguinte: Não ligue a TV no Domingo a tarde; Não escute nada que venha de Goiânia ou do Interior de São Paulo; Não entre em carros com adesivos "Fui ... "

Se te oferecerem um CD, procure saber se o suspeito foi ao programa da Hebe ou se apareceu no Sabadão do Gugu; Mulheres gritando histericamente é outro indício; Não compre nenhum CD que tenha mais de 6 pessoas na capa; Não vá a shows em que os suspeitos façam gestos ensaiados; Não compre nenhum CD que a capa tenha nuvens ao fundo; Não compre qualquer CD que tenha vendido mais de 1 milhão de cópias no Brasil; e Não escute nada que o autor não consiga uma concordância verbal mínima. Mas, principalmente, duvide de tudo e de todos. A vida é bela! Eu sei que você consegue! Diga não às drogas.

Falácias

É incrível como a Internet é a melhor invenção já criada para o espalhamento de boatos e inverdades. Vários escritores já foram vítimas de textos "seus" circulando indevidamente na Web. Posso citar, por exemplo, o Arnaldo Jabor e o Luís Fernando Veríssimo. O problema é tão sério que um desses textos surgiu numa disciplina de pós-graduação que freqüento e, para piorar, foi objeto de análise. Já pensou num bando de empolgados neo-analistas literários tecendo observações acerca do estilo do autor, seu humor, sua ironia, etc? Pois é, nossa época exige cuidados... Vou ver se consigo elencar alguns.

Primeiramente, quando alguém for pesquisar um determinado assunto, jamais saia por aí espalhando informações encontradas unicamente em sites como Wikipédia ou blogs de desconhecidos. Esses ambientes costumam conter informações imprecisas e até mesmo inverídicas, já que seus autores normalmente não possuem o rigor técnico necessário. Não estou dizendo para não consultar esses locais, mas sim que é uma boa prática buscar outras referências (tomando o cuidado para não pesquisar em páginas que simplesmente reproduzem o mesmo erro). No caso específico da Wikipédia, há que se ter ainda mais cautela, pois lá alguns erros parecem ser propositais, aparentes tentativas de induzir à desinformação e/ou versões baseadas em interesses incertos.

Segundo: quando receber um texto via e-mail ou coisa parecida, averigüe sua autoria em sites de busca, pois a polêmica se espalha rapidamente. Muito cuidado ao repassar informações autorais, pois você pode estar contribuindo para a disseminação de boatos e mentiras. Basta ver o caso acima de textos do Veríssimo ("Não às drogas") e do Jabor ("Bunda dura", ou algo assim).

Outro atitude importante é não passar para frente textos e mensagens de autoria duvidosa. Se não souber quem escreveu, não repasse. Outro dia recebi um e-mail com um texto escrito por Shakespeare, vejam só. Bastaram alguns instantes de pesquisa na Internet para verificar a inveracidade da mensagem. Há relatos de casos parecidos com os nomes de Borges, Pessoa e muitos outros.

Creio que essas três ressalvas de cautela são suficientes para que tomemos cuidado no repasse de informações, pois, se a Internet é uma poderosa ferramenta de disseminação de conhecimento, também pode ser uma perigosa armadilha na propagação de conteúdo falso, mesmo isto não sendo uma novidade, pois são famosos os casos de textos falsificados na mídia impressa (principalmente em entrevistas para jornais e revistas) e até mesmo em obras de referência, como enciclopédias. A eletrônica apenas ajuda a agilizar o processo.

O próximo post evidencia um caso bastante exemplar do que pode acontecer com informações de origem mal determinada.

sábado, 27 de setembro de 2008

O "Poeta" em "O albatroz" e "Bendição", de Baudelaire, e "Poema de sete faces", de Drummond

O livro “As flores do mal” foi lançado em 1857, não tendo sido bem aceito e considerado ultrajante à moral vigente. O jornal Le Fígaro chegou a fazer-lhe fortes críticas e o autor ainda foi multado pela justiça francesa. Baudelaire, tradutor de Edgar Allan Poe, crítico literário e considerado precursor do movimento simbolista, nasceu em Paris, em 1821. Diz-se que foi influenciado, entre outros, por Poe e Gérard de Nervall (autor de Sylvie, livro analisado por Umberto Eco em “Seis passeios pelo bosque da ficção”), considerados representantes do chamado “romantismo negro”. Em contrapartida, mostra-se um crítico dos excessos sentimentalistas característicos dos escritores românticos. Baudelaire conheceu diversos escritores franceses, incluindo Balzac, e freqüentava a noite parisiense, incluindo o Club des Hashishins, o que certamente o ajudou na composição de outra obra, “Um comedor de ópio”, a última parte dos “Paraísos artificiais”.

Nos dois poemas aqui analisados, “O albatroz” e “Bendição”, ambos pertencentes ao livro “As flores do mal”, o signo “Poeta” aparece com diferentes conotações. Em “O albatroz”, o poeta é comparado ao “príncipe das alturas”, ou seja, à própria ave marinha. O pássaro, com seu vôo majestoso, em grandes altitudes, elegante em seus movimentos assemelha-se ao poeta no exercício de sua arte, alçando vôos com as palavras, os sentimentos e a imaginação. A ave, quando no solo, mostra-se desajeitada, deselegante, tal qual o artista em meio “à corja imunda”, ao populacho. No início de “Bendição”, o poeta surge em um “mundo enfadado”, com a sociedade a injuriá-lo, execrá-lo. Ele, o deserdado, pelo contrário, parece imune à maldade, sendo superior aos que o perseguem. Ainda assim, ele não é aceito pelos comuns; suas qualidades causam-lhes receio e repulsa. Em ambos os poemas transparece a incompreensão da sociedade e dos críticos acerca de sua obra. No primeiro, ele surge desajeitado, estranho, alvo de troça. No segundo, a despeito de sua atitude, é perseguido, ofendido e amaldiçoado.

Carlos Drummond de Andrade nasceu na pequena Itabira, em Minas Gerais, e essa origem manifesta-se freqüentemente na temática de sua obra e em seu estilo. Publicou o livro “Alguma poesia” no ano de 1930 e nele está presente o “Poema de Sete Faces”. Há quem diga que estas representariam diversas faces do autor e buscam explicações e exemplos a fim de embasar tal ponto de vista. O que se pode perceber, certamente, é que o poeta tímido, marginal em certo sentido - à parte da sociedade -, já se encontra presente nesses escritos. Alguns críticos descrevem essa etapa inicial da obra poética de Drummond como aquela em que ele é maior que o mundo, como se pode ver em “Mundo mundo vasto mundo / mais vasto é meu coração”.

No “Poema de sete faces” há algo de desígnio divino – demiúrgico -, algo de missão, na caracterização do poeta. Um “anjo torto” vem a ele e, nominalmente, profetiza sua posição entre os homens: ele será gauche, aquele que é diferente, estranho, lembrando o albatroz a caminhar. Nos versos seguintes, a situação de marginal se concretiza, denunciada pela posição de observador que ele assume. O poeta chega a falar com Deus, imitando Jesus, sentindo-se abandonado. Contudo, ele sabe que é especial, percebe-se como uma pessoa diferenciada e sente-se maior que o mundo. Expressa, ainda, uma imagem melancólica, mencionando a lua e o conhaque como companheiros, talvez confidentes. É interessante notar que o poema inicia-se com um anjo torto e termina com o vocábulo diabo.

O que parece haver de comum na definição de poeta nos três textos analisados é a condição de ser diferente, estranho, deslocado, que acompanha o artista. A sociedade o rejeita, faz pilhérias, o agride, coloca-o à parte, mas, ainda assim, ele se agiganta. Em “O albatroz”, ele voa alto; em “Bendição”, apresenta uma postura de superioridade; no “Poema de sete faces”, seu coração é maior que o mundo. Nos três casos, ele é marginalizado, porém superior aos que o rodeiam.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Bendição

Quando, por uma lei das supremas potências,
O Poeta surge aqui neste mundo enfadado,
Sua mãe a verter blasfêmias e insolências
Crispa as mãos contra Deus, que a contempla apiedado:

- "Ah! tivesse eu gerado um rolo de serpentes,
Em vez de alimentar esta irrisão comigo!
Mal haja a noite em que, nos gozos inconscientes,
Meu ventre concebeu o meu próprio castigo!

"Já que entre todas as mulheres fui eleita
Para ser a abjeção de um desolado esposo,
E não posso queimar, como ao fogo se deita
Um bilhete de amor, este aleijão monstruoso,

"Eu farei recair teu ódio, que me esmaga,
Sobre o instrumento vil do teu rancor cruento,
E tão bem torcerei a árvore má, que a praga
Não lhe permitirá deitar um só rebento!"

Engole a espuma, então, do seu ódio e, atordoada,
Sem poder compreender os desígnios eternos,
Ela mesma prepara a fogueira votada
Aos crimes maternais no fundo dos Infernos.

Sob a guarda, porém, de um Anjo tranparente,
Embriaga-se de sol o Filho deserdado,
E em tudo quanto come e quanto bebe sente
Um gosto de ambrosia e néctar encarnado.

Fala à nuvem do céu, brinca com a ventania
E faz da Via-Sacra um caminho de festa;
E o Espírito que o segue em sua romaria
Chora ao vê-lo feliz como ave da floresta.

Os que ele quer amar olham-no com receio,
Ou, confiando demais na sua amenidade,
Empenham-se em tirar-lhe um queixume do seio
E experimentam nele a sua atrocidade.

Hipócritas, no vinho e no pão que o alimentam
Eles misturam cinza a impuras cusparadas;
Rejeitam tudo o que ele toca, e se lamentam
Por terem sujado os pés seguindo-lhe as pegadas.

Charles Baudelaire

domingo, 7 de setembro de 2008

Flores do Mal


O Albatroz

Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Quem sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico um cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O Poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
As asas de gigante impedem-no de andar.

(Charles Baudelaire, 1821-1867)

Biblioteca - Os Tambores de São Luís 1


Gostaria de exprimir, a partir de agora, algumas impressões acerca dos livros que tive a oportunidade de ler. Pretendo começar pelo mais recente - e ainda não concluído -, tanto por razões metodológicas - se o ponto de partida é arbitrário, por que não iniciar pelo final da lista? - quanto pelo fato das leituras mais atuais estarem presentes de maneira mais viva na mente.

Pelo título da postagem, é óbvio que o livro em questão chama-se "Os tambores de São Luís", de Josué Montello. Há muito tempo um primo meu vem insistindo para que eu lesse a obra. Mais ou menos um ano atrás, eu a adquiri e coloquei-a na estante, esperando pelo momento em que teria vontade de lê-la. Após alguns livros passarem pelo meu criado mudo - e depois de inúmeras indagações do meu primo se eu já o tinha lido -, decidi retirá-lo do seu nicho na estante e levá-lo para um convívio o qual julgara que seria demorado, devido à espessura do tomo. Rematado engano, este. A leitura do texto mostrou-se bastante fluida, sendo a atenção despertada pelo pitoresco dos detalhes acerca da vida no Maranhão escravocrata e dos sofrimentos e aventuras de Damião, protagonista da obra. Aliás, o fato de um negro ser a principal personagem de um romance já atribui ao texto um caráter diferenciado, pois muda a perspectiva de análise. Passa-se a enxergar a sociedade através da ótica dos oprimidos, dos sofredores, daqueles que são explorados e, literalmente, escravizados por um sistema tão aviltante.

Outro fato que chama muito a atenção é a capacidade de Damião. É ele o homem superior da obra. Superior em inteligência, em moral, em altivez e coragem. Os outros negros e, principalmente, os brancos que o cercam, lhe são visivelmente inferiores, e esta é uma característica do romance que ajuda a dar-lhe um caráter ainda mais especial, inovador. Damião me faz recordar, inúmeras vezes, do Julien Sorel, de Stendhal - em "O vermelho e o negro" -, tanto pela inteligência - e memória - superior, quanto pela necessidade de ingressar nos quadros da Igreja Católica para poder escapar da miséria e da opressão. É verdade que Julien desenvolve suas atividades movido pela ambição, enquanto Damião tenta - pelo menos no início - apenas sobreviver. Mas também é válido interpretar que a percepção deste último de que ele poderia, ou melhor, deveria liderar os negros em busca da liberdade, é, do mesmo modo, uma expressão de ambição. Uma outra abordagem poderia sugerir que Damião assumisse isto como um dever pessoal, uma obrigação. Seu dom seria um presente de Deus, ou dos deuses, e ele não teria o direito de desperdiçá-lo, acomodando-se e não ajudando aqueles que sofrem as dores do cativeiro. Essa acomodação, por sinal, parece ser o principal motivo de suas angústias.

Bem, agora é que cheguei à metade do livro. Espero concluir brevemente sua leitura e voltar a este espaço para compartilhar - comigo mesmo e com alguma alma perdida - outras impressões.

sábado, 7 de junho de 2008

Poema em linha reta

Fernando Pessoa

(Álvaro de Campos)


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Cenas do trânsito 2 - Seu Cardeal

Seu Cardeal esteve casado por exatos sessenta e um anos. Dona Amelinha, flor de quatorze primaveras que colhera na mocidade, fora sua companheira por toda a existência. Juntos, tiveram oito filhos criados vivos, os quais elaboraram arduamente dezessete netos, até o momento - Eita mundão! Dois fazendo oito e oito tendo só dezessete. A proporção mudou muito com a passagem dos tempos. Ainda mais que tem alguns que nunca vão produzir nada... - A família conta ainda com dois bisnetos, que sempre foram os mimos dos patriarcas. Contudo, como nada é eterno, dona Amelinha se foi. Foi docemente, assim como viveu. Tal qual um passarinho, adoeceu, definhou e morreu num breve espaço de tempo. Devido à grande ligação que unia o casal, seu Cardeal não conseguiu se recuperar do baque.

Ele, que fumava cigarros apenas de vez em quando, sempre aliados a uma cachacinha medicinal, adorava mesmo era os charutos. Consumia os cubanos - raramente, devido aos custos - e principalmente os baianos. Sempre havia um na caixinha para compartilhar com os amigos. Eram conhecidas as tardes de xadrez às quintas com o seu Onório, envoltos na fumaça e num silêncio concentrado. Dizia-se à boca miúda que o visitante era muito melhor jogador, mas deixava o outro vencer de vez em quando para que o prazer do embate e, principalmente, do fumo perdurasse indefinidamente. Dona Amelinha, claro, sempre estava ao lado do marido, inalando porções da névoa espessa, ouvindo o vazio de vozes entrecortado pela sonoridade macia do veludo das peças em contato com o tabuleiro e fazendo seu habitual crochê. Toda a família era abastecida por suas criações, que sempre tinham destino e momento certo - ela controlava metodicamente os aniversários e datas importantes. Todos ganhavam toalhas, centros de mesa, colchas de cama, roupas para as mulheres irem à praia e outros tantos itens de seu repertório.

Dona Amelinha, companheira inseparável, dividia com ele, além das tardes como expectadora de xadrez, um tabuleiro de gamão, incontáveis lembranças - registradas em fotos de infinitos álbuns -, enormes extensões de silêncio cúmplice e, principalmente, o café. Era um hábito sagrado na casa, pontualmente às três e meia da tarde, o consumo do café. Café coado, forte e doce, como somente ela sabia fazer. Esse costume tinha um caráter religioso no horário e na obrigação. Nos sessenta e um anos que estiveram juntos, raríssimas foram as vezes em que não houve o ritual do café, sendo que todos esses momentos estiveram relacionados a grandes crises: a morte de um dos filhos durante o parto, o falecimento dos pais do casal e um pequeno flerte que seu Cardeal teve com uma certa dama. Como ele era dono de um comércio que funcionava na parte da frente da casa, sempre estava presente no meio da tarde para consumir a deliciosa bebida negra. Geralmente ela vinha acompanhada de queijo de coalho, bolacha d'água e algum dos bolos que a matriarca preparava com grande habilidade.

Bem, o fato é que, sem dona Amelinha e sem o café, o homem ruiu. Ruiu como as paredes de um castelo caem ante um ataque feroz. Além do cafezinho, já foi dito que seu Cardeal sempre adorou os charutos. Depois da morte da mulher, contudo, parece que esse hábito de décadas disparou um processo que estava engatilhado há tempos em seu corpo. O homem, que antes possuía uma carona vermelha, carnes vastas e uma boa dose de toucinho, secou como as plantas deixadas sem cuidado ou como os pés de pimenta expostos a presenças maléficas. Perdeu, em poucos meses, mais de vinte quilos. Ficou triste, de olhar fixo no infinito, sentado pelos cantos, em silêncio. A maioria dos velhos não consegue superar a perda do companheiro. Talvez se perguntem por que razões deveriam continuar e se lembrem de que não há mais ninguém para compartilhar toda uma vida. Na verdade, é possível que esta vida esteja indo embora, escoando pelo ralo do tempo. Teria ela existido realmente? Ninguém mais pode responder a essa indagação. Não há testemunhas, agora, para comprovar o que passou.

Destruído, mudo e esquelético, certo dia seu Cardeal foi bater na emergência hospitalar. A família já sabia do câncer e todos tiveram certeza de que essa crise representava seus últimos estertores. Ele sempre se negara a fazer o tratamento, pois sabia que não havia esperanças - e nem as poderia querer. Dois dias após a internação, foi mandado de volta a casa para morrer em paz. Levaram-no, então, para a residência do filho mais velho, que ficava em frente à sua antiga loja. Lá seria possível que alguém ficasse com ele o tempo inteiro, prestando-lhe os cuidados necessários. Seu Cardeal permaneceu deitado durante todo o dia de seu retorno e não era esperado que sobrevivesse às vinte e quatro horas seguintes. O homem, contudo, gostava de surpresas. Contrariando as expectativas, amanheceu, começou a entardecer e até apresentou uma pequena melhora. Conseguiu dizer algumas palavras e pôde caminhar um pouco, mesmo sob o efeito da morfina. Estavam se aproximando as três e meia da tarde, seu Cardeal sentado em uma pequena poltrona da sala, e sua neta, responsável por observá-lo naquele momento, recebe um telefonema do namorado. Distraída pelos assuntos amorosos, não percebe que é chegada a hora do café...

***



Denis precisa deixar o escritório no meio da tarde para visitar um cliente. Já devia ter falado com o sujeito há dois dias e o patrão não permitia que ele se esquecesse disso. O cara era um saco - o cliente, mas o mesmo serve para o chefe - e Denis postergou inconscientemente sua ida à loja do dito cujo. Sem mais poder adiar, saiu apressado, pois ainda tinha que voltar para resolver algumas pendências, pegou o carro e foi encarar o inevitável. Ele, felizmente, gostava de dirigir - talvez não tanto com o trânsito caótico desta enorme cidade - e podia dar-se ao luxo do friozinho do ar condicionado e de uma boa música. Seleciona algumas de sua preferência e programa o som do carro de modo aleatório. Denis gosta de músicas antigas, muitas mais velhas do que ele, e hoje escolheu alguns de seus clássicos. Dirigindo e batucando no volante, ouve um velho blues dos Yardbirds. Segue o ritmo compassado de Little Red Rooster, com a voz rouca e forte de John Lee Hooker e as grandes guitarras da banda - pela qual passaram os lendários Jeff Beck, Jimmy Page e Eric Clapton. Empolga-se com a sonoridade da música negra, passa as marchas de modo agressivo, freia com a ponta do pé e acelera com o calcanhar. Faz as curvas de maneira ágil e sente um pouco de liberdade, longe do trabalho, do patrão e dos clientes chatos. Começa, então, a tocar What a woman! de Howlin' Wolf, um gigantesco gênio do blues com sua também enorme voz, e Denis continua imerso em sua viagem. Dirige por ruas estreitas, de calçamento, às vezes o trânsito pára completamente, mas ele está bem. A música tem a capacidade de apaziguar seu espírito. O trânsito flui um pouco e ele pode acelerar mais e sentir o cansado motor se esforçando. O modo aleatório sorteia, então, Mrs. Robinson.

Paul Simon escreveu essa música para um filme chamado The Graduate - mais conhecido como "A primeira noite de um homem" -, no qual a tal Mrs. Robinson tem um caso amoroso com o personagem interpretado por Dustin Hoffman. É uma música interessante, pois tem uma parte intraduzível - o koo-koo-ka-choo - e fala do grande jogador de beisebol Joe Di Maggio, o sortudo e exasperado primeiro marido da Marylin Monroe. Denis sabe de tudo isso porque gosta de música e assistiu diversas vezes ao filme, que por sinal foi fonte de inspiração para várias produções similares. Assim, com a cadência do blues quebrada pela música leve e rápida da dupla Simon e Garfunkel, Denis dirige despreocupadamente seu carro. Segue por uma rua estreita, de forte movimento, pela faixa que deveria ser a lenta, fazendo manobras defensivas e outras nem tanto. Não é por pressa que ele guia assim, apenas é seu jeito. Ele está fazendo coro àquela passagem que fala A nation turns its lonely eyes to you... quando seus olhos captam uma cena espantosa.

Da calçada surge um velhinho esquelético, com ataduras ou esparadrapos no braço esquerdo e na região próxima ao pescoço, caminhando lentamente, feito um zumbi. Ele olha diretamente à frente, como que hipnotizado por uma miragem, e progride, passada após passada. Sua mão parece segurar algo, mas não há nada lá. O homem está cruzando a rua e o carro segue velozmente na direção dele. Com uma manobra rápida, Denis consegue desviar-se da figura esquálida, mas não tem tempo de sentir alívio. O motorista do carro à sua esquerda infelizmente não conta com a mesma sorte. Ouve-se o barulho arrastado de uma freada, seguido de um baque surdo. Denis, assustado, pára o carro. Sua respiração demora para voltar ao normal. Perto do local da batida, começa a aglomerar-se uma multidão. São precisamente três e trinta e cinco da tarde.