sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Nada de novo

Apático e vazio, decidi criar um novo post em meu estagnado blog. Fico feliz que este seja um local praticamente inexplorado, onde posso deixar um texto qualquer com a intenção de que este permaneça incógnito.

Não tenho lido muitas coisas, nem assistido a filmes. Sequer tenho estudado. Às vezes pego "O memorial do convento", do Saramago, ou um livro teórico qualquer. O último filme a que assisti foi "Up", com dublagem do Chico Anysio. Achei-o divertido e melancólico. Nunca tinha assistido a uma animação tão triste.

Estou iniciando os preparativos de mundança para o novo apartamento, mas sem muito ânimo. Um tempo tão grande com um ente querido no hospital debilita qualquer um. Espero que tudo melhore até o final do ano. Minha grande alegria é meu filho.

Após a releitura, vi que este não é um texto. São apenas frases soltas.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Links about Neverwhere

- "All books have genders", by Neil Gaiman:

http://www.neilgaiman.com/p/Cool_Stuff/Essays/Essays_By_Neil/All_Books_Have_Genders

- "Neil Gaiman's Neverwhere: writing The Other", by Jennifer Kesler:

http://thehathorlegacy.com/neil-gaimans-neverwhere-writing-the-other/

- "Neverwhere and Neil Gaiman's female characters", about Sarah Jaffe:

http://blog.newsarama.com/2009/01/01/neverwhere-and-neil-gaimans-female-characters/

Neverwhere

Página com dados sobre o DVD Neverwhere, série produzida pela BBC, dividida em seis partes.

Neverwhere

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Neil Gaiman on Neverwhere

Entrevista do escritor Neil Gaiman, para a revista SFX, sobre o livro Neverwhere.

Neil Gaiman on Neverwhere

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quinta-feira, 23 de julho de 2009

A pedido de uma pedagoga

O material apresentado pela professora divide-se em textos numerados. Na primeira aula, ela trabalhou o texto 1 e indicou a leitura do texto 2. No primeiro deles (de Jaime Pinsky, professor da Unicamp), o autor faz uma análise crítica do papel do professor e da própria educação na sociedade, começando por enumerar opiniões e abordagens equivocadas, ou confusas, como a daqueles que aproveitam a ocorrência de eventos institucionais, como concursos para provimento de cargos e vestibulares, para alavancar vendas de manuais; cita também os que debatem novas formas de acesso à universidade de maneira um tanto irrefletida; menciona a confusão entre as boas e as más instituições de ensino privadas; por último, critica os que veem a internet como verdadeira panaceia para os problemas educacionais. O autor continua sua crítica à nossa sociedade ao falar da perda de valores que antes nos eram caros, como o respeito à sabedoria adquirida pelo passar dos anos. Cita também o fazer capitalista com suas terceirizações indiscriminadas. Outro aspecto mencionado é o fato de que os pais esperam demais da escola, eximindo-se em boa parte de suas responsabilidades como educadores. Jaime Pinsky relembra dois professores marcantes que teve durante sua vida acadêmica. Um deles conseguiu fazê-lo gostar de Machado de Assis, enquanto o outro enriqueceu sua vida instigando-o a criar argumentos, através do estudo, para refutar conceitos mostrados em sala. Por fim, o autor estabelece as qualidades que imagina serem essenciais para um bom professor: cultura, visão crítica, formação humanística e abertura às mudanças. Diz que o bom professor é aquele que educa. É enfatizada, ainda, a função do livro como parceiro do professor na educação de seus alunos.


Sendo este um texto de caráter subjetivo, no qual devo mencionar o que aprendi e não aprendi durantes as aulas, devo dizer que as reflexões feitas pelo professor Jaime Pinsky são bastante válidas no que tange à superficialidade e à hipocrisia existentes no debate sobre a educação em nosso país. Também concordo com suas críticas quanto ao modelo neoliberal de educação e de sociedade. Faço também minhas suas palavras quanto à importância do livro e de seu papel fundamental com fomentador da capacidade crítica dos alunos. Cabe, contudo, uma brincadeira quanto aos termos machadófobo e machadólatra. Parece que, sempre quando tratamos de Machado de Assis, as paixões, negativas ou positivas, costumam aflorar. Essa divisão pró e contra Machado nem deveria existir. Sem dúvida, trata-se de um grande escritor, um figura muito importante para a formação de nossa literatura, se é que posso utilizar essa terminologia. No entanto, parece haver um campo em que são colocados aqueles que não gostam do autor devido à sua incapacidade de entendê-lo. Como se o sujeito fosse maduro intelectualmente ou não pelo fato de gostar ou desgostar de Machado. Tanto é essa a concepção do professor Jaime, que pode-se perceber a sua transformação para machadólatra ao ser influenciado e guiado por um professor. Acredito ser possível ler esse autor estando imune a tais paixões, analisando, ou fruindo, o que nele me desperta interesse e simplesmente ignorando o resto. Dito isto, gostaria de terminar este parágrafo de análise sobre o texto 1 afirmando que, apesar de tê-lo achado, no geral, bastante pertinente, ele não enriquece muito o debate sobre educação. Suspeito que tenha sido escrito de modo despretensioso, talvez para um veículo de grande circulação, com leitores de gostos variados e não especializados no tema. Sua leitura é relevante como abertura para debates, mas não traz realmente nada de novo.


O texto de número 2, de autoria de José Carlos Libâneo, refere-se à construção da identidade profissional do professor e foi abordado detalhadamente no início da segunda aula. Fala dos conceitos de profissionalidade, profissionalização e profissionalismo. Trata-se de uma roupagem interessante para temas já bastante abordados. No que tange à construção da identidade do professor, foi interessante o debate acerca do caráter subjetivo desse conceito, ligado à autoestima, à sensação de sucesso, à remuneração e à formação continuada, conceito visto em detalhes pelo autor. O texto 2 menciona, ainda, as características e diferenças existentes entre saberes e competências. Tanto para mim quanto para outras pessoas na sala, esse debate já pareceu bastante desgastado, principalmente no que tange aos problemas encontrados na vida docente, trazendo, pois, poucas novidades aos presentes.


Em outro momento, a professora mostrou em sala dois métodos distintos de fichamento, os quais parecem ser bastante úteis para a organização das leituras e futura elaboração de citações e referências bibliográficas. Para mim, que não costumo fazer fichamento, mas apenas grifos nos textos, foi uma boa sugestão, apesar de não estar convencido que eu vá conseguir me organizar desta forma.


O texto de número 3, cuja autoria ignoro (talvez por falta de atenção), lança mão de trocadilhos sobre a máxima socrática acerca da ignorância. Aos moldes de um texto de autoajuda, enumera quatro fases para a aprendizagem. Pode ser resumido através do seguinte excerto: “Somos inconscientemente incompetentes na primeira fase, conscientemente incompetentes na segunda, conscientemente competentes na terceira e inconscientemente competentes na quarta fase”. Como já foi dito, o texto lembra bastante publicações de autoajuda quando cria esquemas com número de fases definidas (algo como sete passos para o sucesso ou cinco dicas para entender sua esposa), o que mostra seu caráter esquemático, ainda que ilustre as fases da aprendizagem.


Finalizando a segunda aula, foi mostrado um interessante vídeo sobre educação e a turma foi dividida em três equipes. A professora pediu que lêssemos um texto e colocássemos suas personagens em ordem decrescente de culpa. Não nos foi dito qual seria a culpa em questão (se seria a morte da personagem ou a criação da situação como um todo). O texto também não entrava em detalhes quanto às motivações dos envolvidos nem pormenorizava aspectos espaçotemporais (a não ser a referência a uma ponte, a qual utilizamos como símbolo em nossas análises). O debate foi bastante interessante, tendo o texto como ponto focal. Foi abordada a construção de significados por cada um de nós e o modo como íamos agindo como coautores por meio do olhar individual. A gradação das culpas foi elaborada e comparada ao trabalho dos outros grupos. Sugeri, em tom descontraído, uma possível razão para a ocorrência dos eventos (algo como um possível desfecho para a história). Minha expectativa acerca dos comentários da professora foi bastante grande, imaginando que haveria uma surpresa final, tal como explicações acerca dos eventos. Devo dizer, como aluno, que o ocorrido foi bastante frustrante. Ao invés de especulações acerca do texto, a professora começou a tecer juízos de valor com base nos comentários e observações dos grupos. O que foi dito por nós acabou sendo usado na elaboração de generalizações acerca de nossas opiniões pessoais e valores éticos. Desse modo, quem não colocou o bandido como principal culpado foi rotulado como alguém com valores morais deturpados. Do mesmo modo, o final que contei para a história não foi tomado como uma brincadeira, mas sim como uma visão preconceituosa contra a mulher, como machismo. Esqueceu-se completamente que os valores de um texto não correspondem aos de seu autor e, mais ainda, que o narrador não é o autor. Assim, quando fiz o comentário, não era eu quem falava, mas sim um possível narrador para a conclusão da história. Houve uma confusão primária e desnecessária acerca do que estava sendo dito com base no texto e do que expressava opiniões pessoais do aluno. Nós, como alunos focados em literatura e semiótica, tratamos o texto como ficção e, pelo menos no meu caso, cuidei do exercício como atividade intelectual livre, de onde não seriam depreendidos juízos de valor acerca de minhas opiniões e convicções éticas. Deste modo, não aceito os comentários da professora e gostaria que ela revisse seu posicionamento, não utilizando mais dinâmicas de grupo (pois não penso tratar-se de outra coisa a sua atividade) para avaliar o caráter de seus alunos, visto tratarem-se estas de ferramentas totalmente inadequadas para serem utilizadas como subsídio para conclusões de cunho generalista. O que aprendi no final dessa aula foi a tomar cuidado com o que digo num ambiente que inadvertidamente julguei livre de radicalismos, sectarismos, e propício ao debate intelectual.

A TRAGÉDIA DE ÉDIPO



(Pai e filho conversam na sala de casa)


– Pai?
– Oi, filho.
– Me conta uma história?
– Agora?
– É, pai.
– Qual história, filho?
– Não sei, inventa uma.
– Tá bom. Era uma vez uma menina que andava pela floresta...
– Tem lobo essa história, pai?
– Acho que sim, mais para frente.
– Sem essa de lobo! O senhor já contou um monte dessas!
– Bem, sem lobos fica difícil. Que tal a do Aladim e...
– Hum, hum. Já assisti o filme.
– E se fosse um ogro que vive numa floresta...
– Shrek, pai. Tá tentando me enrolar.
– Putz! Quer dizer, droga! Já que é assim, tem aquela do cara que acorda num banheiro sujo, perto de outro cara que ele descobre, mais tarde, que tem que matar para salvar a...
– Pô, pai! Pegou pesado! Tá falando de Jogos Mortais. Já vi também.
– Como é? Você já assistiu Jogos Mortais? Desde quando você assiste esse tipo de filme?
– Vi não, pai. Me contaram.
– Precisamos conversar...
– Não tem uma história mais normal?
– Pode ser. Tem a de um rei antigo.
– Rei? Parece bom.
– E é. O nome dele era Édipo. Já assistiu a quantos filmes sobre ele?
– Esse eu não conheço não.
– Bem, ele era rei de uma cidade chamada Tebas, na Grécia antiga.
– Tebas?
– Sim. Na Grécia antiga, as pessoas costumavam encenar a história desse rei.
– Como no teatro?
– Exatamente. Você sabia que o teatro surgiu mais ou menos nessa época?
– Hum, hum.
– Pois é. As pessoas faziam uma festa para comemorar a boa colheita.
– E se a colheita fosse ruim, pai?
– Bem, não sei. Acho que eles ainda agradeceriam a Dionísio, para tentar a sorte no ano seguinte.
– O rei era Dionísio ou esse tal de Édito.
– O nome é Édipo, que era rei de Tebas. Dionísio era um deus.
– Um deus? E Deus tem nome?

(O pai, para si mesmo)

– Ainda vou me ferrar!

(Voltando-se para o filho)

– Os gregos acreditavam que existiam muitos deuses. Hoje em dia, nós achamos que só tem um.
– Mas ter muitos não é mais legal?
– Pode ser, mas esquece um pouco isso. O que interessa é que eles cantavam ditirambos e dançavam para comemorar a colheita.
– Diti o quê?
– Eram umas músicas deles lá. Eles matavam também um bode em homenagem a Dionísio.
– Massa!
– O bode não gostava não.
– Dããã, pai! Claro que não!
– Teve também um sujeito chamado Tespis que decidiu fazer o papel do Dionísio pela primeira vez.
– Ninguém tinha tido essa ideia antes?
– Por incrível que pareça, não.
– Tespis é um nome engraçado.
– É sim. Desse ano em diante, quando o Tespis decidiu ser Dionísio, eles passaram a repetir a representação sempre. Com o tempo, eles acabaram esquecendo que a festa era em homenagem a Dionísio e começaram a escrever histórias para teatro.
– Coitado do Dionísio.
– É sim. Talvez os deuses morram quando são esquecidos. A história do rei Édipo vem depois dessa época, quando já havia grandes escritores fazendo peças.
– Peças?
– Sim, é o nome das histórias que passam nos teatros.
– Ah! Mas o senhor vai contar a história do rei ou não?
– Vou sim, seu apressado. Édipo era filho do rei Laio e da rainha Jocasta.
– Gostei dos nomes.
– Antes do Édipo nascer, seus pais foram a um oráculo.
– O que é oráculo?
– É um lugar onde existe uma pessoa que fala com os deuses e pode dizer o seu futuro.
– Irado! Existem oráculos hoje em dia, pai?
– Acho que o mais próximo disso é o Google!
– Fala sério, pai! O Google não pode dizer o meu futuro.
– Quem sabe daqui a algumas versões... Voltando à história, o oráculo disse para o rei e a rainha que o filho deles iria matar o pai e casar com a mãe.
– Credo! Jogos mortais é fichinha perto disso!
– Para você ver... O pior não é isso. O rei Laio, para evitar que acontecesse o que o oráculo disse, manda matar o filho.
– Que covarde!
– É, acho que não foi a melhor opção. Mas o rei estava tentando fugir do seu destino.
– E ele conseguiu?
– Deixe-me continuar a contar! O rei entregou o menino a um pastor, que deveria deixá-lo amarrado para morrer num local bem feio. Os pés do menino foram furados. Édipo, aliás, significa pés inchados.
– Pô, pai, sacanagem!
– Olha a boca! O pastor teve pena do menino e entregou-o a um colega.
– Acho que já vi isso antes.
– As coisas se repetem, filho. O outro pastor levou o menino para o rei de Corinto, que se chamava Pôlibo, e sua mulher, Mérope.
– Quanto nome estranho!
– Citroelson não é melhor e eu já conheci um.
– Coitado!
– Traumatiza, sabe? Bem, o rei Pôlibo e sua mulher decidiram criar o menino sem que ele soubesse de onde veio.
– Ele não sabia que era adotado?
– Não, até que um dia um bêbado falou que ele era filho adotivo, então Édipo foi consultar o oráculo para saber sua origem.
– Era o mesmo oráculo?
– Esse era o de Delfos. O outro, eu não sei. Não importa, o oráculo disse que ele mataria o pai e casaria com a mãe, mas não disse se ele era filho do rei Pôlibo ou não.
– Que confusão!
– É verdade. Sem ter certeza se era adotado ou não, Édipo vai embora para que a profecia não acontecesse.
– Sofre um bocado esse Édipo.
– Isso não é nada, mas não adiantemos os fatos. Édipo em fuga passa perto de Tebas e, numa encruzilhada...
– Encontrou um lobisomem.
– Não. Na verdade, não sei se lobisomens já existiam naquela época. Édipo encontrou um homem idoso num carro, seguido por criados. Esse homem o ofendeu, mandando que saísse da estrada, e um de seus criados acertou umas pancadas em Édipo. Este reagiu e matou o homem do carro e seus criados, menos um, que saiu correndo.
– Fugiu, o covarde.
– Foi. Não me lembro se ele volta a aparecer na história. De todo modo, você sabe quem era o homem do carro, morto por Édipo?
– Como vou saber?
– É, não tem como. Algum chute?
– Não.
– Tenta.
– Não.
– Tudo bem. O homem morto era Laio, pai de Édipo.
– Olha aí, pai! Que mundo pequeno!
– Se o mundo é pequeno hoje em dia, imagina como era a Grécia mais de dois mil e quinhentos anos atrás.
– E depois, o que aconteceu?
– Édipo foi para Tebas.
– E ele não sabia que tinha nascido lá, né?
– É. Quando chegou em Tebas, tinha uma Esfinge bloqueando a entrada da cidade.
– Uma esfinge igual à do Egito?
– Sim, só que essa ainda tinha nariz. Ela propôs um enigma para Édipo. Se ele não decifrasse, ela o mataria.
– Qual era o enigma, pai?
– Ela queria saber qual animal tinha quatro patas de manhã, duas de tarde e três à noite.
– E existe algum?
– Sim, o homem. De manhã, na infância, o homem engatinha, usando quatro patas; à tarde, ou seja, depois que aprende a andar, usa duas patas; na velhice, que é a noite do homem, ele usa três.
– Três?
– Sim. Suas duas pernas, mais a bengala.
– Show! O Édipo foi muito esperto.
– É. Decifrou o enigma, tornou-se rei de Tebas e casou-se com Jocasta.
– A mãe dele.
– Exatamente. Eles tiveram quatro filhos: Antígona, Ismene, Polinices e Etéocles.
– Quem é homem e quem é mulher nessa história?
– Antígona e Ismene são mulheres. Polinices e Etéocles, homens.
– Polinices parece nome de mulher.
– Também acho. A verdade é que Édipo foi um grande rei, mas os deuses, sabendo que ele casara com a mãe e tivera quatro filhos que eram seus irmãos, decidiram castigar Tebas. Eles lançaram uma peste que começou a dizimar os habitantes e acabar com as colheitas.
– Uau! Essa história tem muita ação, pai.
– Exatamente, filho. Aliás, o sábio Aristóteles comenta sobre isso em um livro.
– Quem é esse Aristóteles? O que ele tem a ver com o Édipo?
– Aristóteles foi um sujeito muito inteligente, que pensava sobre muitas coisas, entre elas, o teatro grego. Ele diz que uma peça como essa do Édipo acontece com os personagens em ação no momento presente. Isso dá vida ao espetáculo e acontece muito nos filmes que você gosta.
– Ah! Os filmes de ação.
– Exatamente, mas não apenas nesses. Ocorre na maioria dos filmes feitos nos Estados Unidos.
– E naqueles filmes que a mamãe gosta?
– Aqueles são filmes europeus. Alguns os chamam de filmes de arte. Ali é outra coisa.
– Eu acho chato. Não acontece nada.
– É verdade.
– O senhor gosta desses filmes, pai?
– Bem, voltando ao Édipo, Aristóteles diz que a história dele, escrita por outro grego, chamado Sófocles, é a melhor de todas as tragédias.
– Existe tragédia boa?
– Acho que para quem faz parte dela, não. Mas como história, a de Édipo é a mais famosa das tragédias.
– Por quê?
– Um dos motivos é que ela não é contada do jeito que eu fiz agora.
– E como é?
– A peça começa com Édipo, já rei, falando com a população sobre as calamidades que estavam acontecendo em Tebas. O povo pedia que ele fizesse alguma coisa.
– Essa é a parte da peste, né?
– Justamente. Eles queriam que o Édipo desse um jeito.
– E o que ele fez?
– Mandou o cunhado, chamado Creonte, ao oráculo de Delfos.
– Tudo se resolvia com o oráculo naquela época?
– Parece que sim.
– E o que o oráculo falou?
– Ele disse que tudo melhoraria quando o assassino do antigo rei Laio fosse pego.
– Mas não foi o Édipo que matou ele?
– Aí é que está a genialidade do Sófocles. Ele começou pelo final e criou algo como uma história de detetives em que o investigador é o culpado e não sabe disso.
– Muito massa! E complicado também.
– Sem dúvida. A peça mostra a investigação de Édipo até a descoberta da verdade.
– E ele descobre?
– Claro, esse é o fechamento da tragédia!
– E o que acontece quando ele descobre?
– A mãe dele, Jocasta, se mata e Édipo fura os próprios olhos.
– Credo! Nível Jogos Mortais, isso!
– Realmente. É interessante perceber que a ação de furar os olhos praticada por Édipo tem um significado simbólico.
– Simplifica isso, pai.
– Quer dizer que o autor queria dizer alguma coisa através dessa atitude do Édipo.
– Dizer o quê?
– Édipo, quando tinha os olhos bons, não era capaz de ver tudo o que acontecia à sua volta. Era como se fosse cego. Ele fura os olhos meio que para dizer que antes não enxergava e agora, cego, era capaz de perceber a verdade. Furar os olhos de modo a olhar para dentro: esse é o ponto.
– Muito complicado, e triste também.
– Sem dúvida.
– Acontece o que depois?
– O Édipo vai embora e seus dois filhos brigam pelo controle da cidade. O que acontece a seguir é narrado em duas outras peças de Sófocles: Antígona e Édipo em Colono.
– O senhor conta pra mim?
– Agora não. Quem sabe outra hora? Filho, posso fazer uma pergunta?
– Sim?
– Por que você pediu para que eu contasse uma história?
– Bem, a professora está falando de narração e mandou a gente escrever uma em casa.
– Você queria usar a minha história como lição-de-casa?
– Só como inspiração, pai.
– Hum, sei. Você não vai poder falar do Édipo.
– O professor já conhece?
– Com certeza, mas você pode aproveitar alguma ideia.
– Será que eu consigo?
– Só tentando para saber.
– Pai, por que uma história tão antiga ainda é contada?
– Acho que é porque ela trabalha com temas que não perdem nunca a validade. Ou seja, a história é muito boa. Você sabia que ela permaneceu como modelo até há pouco mais de cem anos?
– Não brinca!
– É. Até mais ou menos 1880 esse modelo, chamado aristotélico, permaneceu como referência. Foi um sujeito chamado Ibsen que começou a mudar as coisas.
– E o que ele fez?
– Ele fez com que uma história, que normalmente seria contada em um romance, com um narrador dando várias explicações, pudesse ser transformada em obra dramática.
– Não entendi nada.
– É melhor deixar para lá. Outro dia eu leio para você uma história do Ibsen.
– Será que vou entender?
– Acho que sim. Quem sabe eu mostro também Tchékov e Beckett?
– Quem são, pai?
– Outros caras que mudaram o teatro. O Beckett tem uma peça interessante chamada Esperando Godot.
– O que acontece nela?
– Nada, filho.
– Como assim?
– Não há ação e este é o ponto. Umas pessoas reúnem-se numa estrada, têm umas conversas meio absurdas e ficam esperando esse tal de Godot.
– Quem é ele?
– Não sei não.
– E por que eles estão esperando por ele?
– Também não sei.
– Por quanto tempo eles tiveram que esperar?
– Acho que para sempre. Esse Godot nunca chegou, filho. Godot nunca chegou...

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Assum Preto


Surgiu uma referência a essa música do Luiz Gonzaga na aula de hoje e bateu uma nostalgia de quando eu a ouvia no tape TKR do fusca do meu pai. Era uma das poucas fitas que possuíamos e eu sempre a adorei, bem como a do ABBA. Outra música do Luiz Gonzaga presente na fita era Qui nem jiló, também muito bonita e que despertava saudades de uma namorada platônica de minha adolescência.

Segue a letra:


Assum Preto

Composição: Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira

Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor (bis)
Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá de mió (bis)
Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá (bis)
Assum Preto, o meu cantar
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Two Songs

Start me up

If you start me up
If you start me up I'll never stop

You make a grown man cry
Spread out the oil, the gasoline

(Jagger/Richards)


Break on through

You know the day destroys the night
Night divides the day
Tried to run
Tried to hide
Break on through to the other side
Break on through to the other side

(The Doors)

sábado, 18 de abril de 2009

GERAÇÃO BEAT E MÚSICA


1. Introdução

A ligação entre a chamada geração beat da literatura norte-americana e a música é muito forte. Lendo aquele que é considerado o mais emblemático de seus livros, On the road, de Jack Kerouac, é possível perceber a importância da música na composição da história e também na vida das personagens. Dean Moriarty e Sal Paradise, os protagonistas da obra, atravessam os Estados Unidos de fins da década de 1940 e início da de 1950 bebendo, usando drogas e freqüentando bares fervilhantes, repletos de alucinados músicos de jazz e com uma platéia sedenta de vida.

A trilha sonora que acompanha as personagens de On the road é, essencialmente, o jazz, principalmente o bebop – ou simplesmente bop –, cujos principais expoentes são Charlie Parker, Dizzie Gillespie e Thelonius Monk. Além desse estilo musical, também são mencionados o blues e alguns ritmos latinos, como o mambo. Deve-se ressaltar que o rock-and-roll é posterior à geração beat, tendo seu início bastante influenciado por alguns de seus escritores. Figuras importantes da cena musical dos anos 60 do século XX, como Bob Dylan e as bandas The Doors, Grateful Dead, Beatles e Pink Floyd tiveram, pelo menos no início, forte influência de Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs, dentre outros.

2. Influência do jazz

Em meados da década de 1930, o gênero predominante era o swing e um dos seus centros, Kansas City – cidade caracterizada por um estilo mais leve e descontraído que o de Nova York. Entre os músicos importantes desse cenário pode-se mencionar Count Basie e Lester Young. É tão forte a presença desses artistas para Kerouac que alguns personagens de On the road vão a um show de Young. O ano de 1945 pode ser considerado como o de início do bebop, o qual se tornou o ritmo musical mais inovador e influente do final dos anos 40 e do início da década seguinte. Ao contrário do swing, caracterizado por seu estilo dançante, o bebop chocava “com seus improvisos frenéticos e angulosos os fãs mais tradicionais” (Calado, pg. 23). Esses improvisos frenéticos, executados por músicos como Charlie Parker e Dizzie Gillespie, influenciaram fortemente escritores da geração beat, como Kerouac. Como menciona, de modo feliz, Eduardo Bueno – acerca do estilo do escritor franco-canadense – em sua introdução à edição de On the road da editora L&PM

Seu plano era deixar a própria personagem expressar-se livremente, entregando-se à descrição detalhista da paisagem suburbana (e underground) americana, numa versão tardia (mas pré-pop) da escrita automática dos surrealistas, um stream of conciousness (ou fluxo de consciência) mais facilmente compreensível por quem desfrutou de alucinógenos como maconha, mescalina e peiote (Kerouac, pg. 16).

Assim, esses solos executados pelos mestres do bop podem ser colocados em paralelo com a chamada “prosa espontânea” que Kerouac tentou desenvolver. Eduardo Bueno classifica o estilo beat como “laudatório, verborrágico, impressionista, vertiginoso, incontido, ‘espontâneo’, repleto de sonoridade, de gíria, de coloquialismo e de aliterações”. Ainda segundo Bueno, Kerouac “tentava fazer com que suas frases soassem como um solo de sax de Charlie Parker”, ao som do qual teria escrito On the road vertiginosamente, em um rolo contínuo de papel com 40 metros de comprimento, estimulado por grandes doses de benzedrina. Outro aspecto que aproxima escritores beat e alguns expoentes do bebop, como Parker, era o uso intensivo de drogas.

Não é apenas a semelhança entre o bebop e a prosa utilizada em On the road que denota a influencia do jazz no livro. Outro aspecto importante é o próprio ambiente que envolve as personagens, bem como suas aspirações e modo de vida. Dean e Sal vêm e vão pelas estradas norte-americanas em busca de emoção, de sentido existencial. Um dos mais importantes elementos nessa busca, além das mulheres e de estimulantes, é a música. O jazz os guia, aparece nos carros, nos bares que freqüentam, nas jukieboxes que surgem pelo caminho. O ritmo é um componente formador da obra literária, não apenas um acessório. O meio cultural influenciador do bop é o mesmo que criou seres como os protagonistas do livro. O comportamento e os anseios dos músicos são muito parecidos com o das personagens, criadas à semelhança de pessoas reais, como o próprio Kerouac (Salvatore Paradise) e seu amigo Neal Cassady (Dean Moriarty). O estilo frenético, não planejado, do bebop lembra bastante a inquietação juvenil e a sede de vida existente em Sal, Dean e seus amigos. Uma América diferente daquela preconizada pela cultura dominante do pós-guerra – pacata, feliz e ansiosa por brinquedos tecnológicos, como carros e eletrodomésticos – caracterizava tanto a cena jazzística quanto o modo de vida das personagens de On the road. A maioria dos grandes músicos de jazz é negra, de origem modesta, e a juventude descrita no livro se rebela contra o vazio gerado pelo american way of life, criado por uma elite branca. Eles buscam viver intensamente, preconizando a liberação sexual, fazendo uso intensivo de “estimulantes” – como maconha, benzedrina, morfina e álcool – e evitando vínculos profissionais e sentimentais duradouros.

Vale ainda ressaltar a aula de história do Jazz apresentada por Kerouac, com seu estilo solto e verborrágico, nas páginas de On the road

Outrora fora Louis Armstrong, mandando ver nos lamaçais de Nova Orleans; antes dele, os músicos loucos que entravam nas paradas, aos feriados, e desfaziam as marchas marciais transformando-as em ragtime. Surgiu então o swing e Roy Eldridge, vigoroso e viril, quase rebentando seu trompete ao arrancar dele sonoras ondas de poder, lógica e sutileza – inclinado, com os olhos radiantes e um sorriso encantador –, irradiando-as, para fazer gingar todo mundo do jazz. Chega então a vez de Charlie Parker entrar em cena, ele era apenas um garoto no casebre de madeira de sua mãe em Kansas City soprando seu sax-alto todo remendado, entre as tábuas, praticando nos dias de chuva, fugindo vez ou outra para assistir à banda do velho Basie e de Benny Moten, [...] e então Charlie Parker saiu de casa e foi para o Harlem encontrar o louco Thelonius Monk e Gillespie, mais louco ainda... (Kerouac, pg. 293, 294).

3. Influenciando as décadas seguintes

Se os escritores da geração beat estão fortemente ligados ao jazz, também é possível afirmar que eles influenciaram os movimentos musicais posteriores, principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra. Bandas como Pink Floyd surgiram de clubes como o UFO, em Londres, visitado por Ginsberg. Um álbum falado em homenagem a Kerouac, chamado Kicks Joy Darkness, contou com a performance de artistas como Steve Tyler, do Aerosmith, Michael Stipe, do REM, e Joe Strummer, do Clash. A banda King Crimson gravou uma disco chamado Beat com músicas como Neal and Jack and me e Satori in Tangier. Lendas do rock, como Bob Dylan e Jim Morrison afirmaram ter sido muito influenciados pela leitura de On the road. Enfim, são inúmeros os legados deixados pela geração beat para os músicos dos anos 1960 e 70, principalmente.

A relação entre os escritores beat e músicos pode ser estendida ainda mais. Num rápido acesso à Internet é possível ver relações entre Ginsberg, Bob Dylan e Beatles. Michael McClure foi amigo de membros do The Doors. Cassady foi membro da banda Ken Kesey’s Merry Pranksters, um grupo que incluiu membros do Grateful Dead. Aliás, é famosíssima sua participação no ônibus mais louco da história, em que Cassady e integrantes dessas bandas percorreram os Estados Unidos realizando performances musicais e distribuindo LSD. Entre os amigos de Burroughs estão Mick Jagger, dos Stones, e Lou Reed, do Velvet Underground. Ginsberg trabalhou com o Clash, Burroughs com Sonic Youth, REM, Kurt Cobain e Ministry. Bono Vox do U2 cita Burroughs como uma grande influência. Como se pode perceber, as ligações são inúmeras, o que demonstra a força da geração Beat na música da segunda metade do século XX.

Eduardo Bueno corrobora as ligações entre os beats e o rock encontradas na grande rede

A questão é que tal geração se multiplicou em muitas. Bob Dylan fugiu de casa depois de ler On the road. Chrissie Hynde, dos Pretenders, e Hector Babenco, de Pixote, também. Jim Morrison fundou The Doors. No alvorecer dos anos 90, o livro levou o jovem Beck a tornar-se cantor, fundindo rap e poesia beat. Jakob Dylan, filho de Bob, deixou-se fotografar ao lado da tumba de Kerouac em Lowell, Massachussets, como o próprio pai fizera, vinte anos antes [...].

Na verdade, se a explosão hippie dos anos 1960 for interpretada como uma conseqüência indireta de On the road – o que não constitui um exagero –, nenhum livro deste século terá deflagrado uma revolução comportamental maior do que a obra de Kerouac (Kerouac, pg. 293, 294).

A fim de acentuar a importância cultural dos escritores beat, é válido lembrar das incursões de Ginsberg em eventos, festivais e outras apresentações, lendo seus poemas e demonstrando, ao lado de Timothy Leary, os benefícios do LSD. Pode-se citar, ainda, as viagens do escritor para a Inglaterra e o trabalho com bandas como o Clash, um ícone do movimento Punk.

4. Conclusão

Como foi possível perceber, a ligação entre os escritores da geração beat e a música – tanto a que veio antes, quanto a posterior a seus trabalhos – é visceral. Poesia e prosa inspiradas pelo jazz, uma sociedade baseada nas idéias do mundo do jazz, eram características comuns de vários autores desse grupo. A rebeldia e o desejo de viver longe da monotonia da sociedade americana do pós-guerra são emblemas desses artistas que inspiraram várias gerações de músicos nas décadas seguintes. O rock e o pop pagaram grandes tributos a esses autores, tão importantes para formar o ideário jovem da revolução comportamental da segunda metade do século XX.

5. Bibliografia

KEROUAC, Jack. On the road (Pé na estrada). Porto Alegre: L&PM, 2004.

CALADO, Carlos. Charlie Parker. Rio de Janeiro: MEDIAFashion, 2007.

WIKIPEDIA. http://en.wikipedia.org/wiki/Beat_Generation.

LITERARY KICKS. http://www.litkicks.com/Jazz/.

MUNDOCLASICO. http://www.mundoclasico.com/2009/documentos/doc-ver.aspx?id=ec40f7d5-2ae5-477d-bcc1-bf3be02c5402.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Leitura Obrigatória


"Acho a frase 'leitura obrigatória' um contra-senso. A leitura não deve ser obrigatória. Devemos falar de prazer obrigatório? Por quê? O prazer não é obrigatório, o prazer á algo buscado. Felicidade obrigatória! A felicidade, nós também buscamos. Fui professor de literatura inglesa por vinte anos na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e sempre aconselhei a meus alunos: se um livro os aborrece, larguem-no; não o leiam porque é famoso, não leiam um livro porque é moderno, não leiam um livro porque é antigo. Se um livro for maçante para vocês, larguem-no; mesmo que esse livro seja o Paraíso perdido - para mim não é maçante - ou o Quixote - que para mim também não é maçante. Mas, se há um livro maçante para vocês, não o leiam: esse livro não foi escrito para vocês. A leitura deve ser uma das formas de felicidade, de modo que eu aconselharia a esses possíveis leitores do meu testamento - que não penso escrever -, eu lhes aconselharia que lessem muito, que não se deixassem assustar pela reputação dos autores, que continuassem buscando uma felicidade pessoal, um gozo pessoal. É o único modo de ler."

Jorge Luis Borges
Tirado de Borges para millones, entrevista feita na Biblioteca Nacional [Argentina] em 1979.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

O INVASOR



ALTERAÇÕES NARRATIVAS OCASIONADAS PELA ADAPTAÇÃO DO ROMANCE O INVASOR PARA O CINEMA


1. INTRODUÇÃO

O romance O Invasor, de Marçal Aquino, foi adaptado para o cinema por Beto Brant. O livro é narrado em primeira pessoa pela personagem Ivan, cúmplice no assassinato de um dos sócios de sua empresa. Como toda a narrativa transcorre sob o olhar de Ivan, as cenas limitam-se àquelas em que ele toma parte. Dizendo de outro modo, tudo que acontece está ou esteve sob seu olhar. Os eventos enunciados são de seu conhecimento, já que ele é o próprio responsável por contar a história. No filme de Beto Brant, contudo, pode-se dizer que Ivan seja o personagem principal, mas não o narrador. O foco narrativo é alterado durante a passagem de um meio de expressão para outro. A montagem, através do diretor e do olhar de sua câmera, é responsável por contar a história. Desse modo, no filme existe a possibilidade de inserção de cenas das quais Ivan não tem ciência.

O objetivo deste estudo é analisar quais alterações derivadas da mudança de foco narrativo, ocasionada pela tradução intersemiótica do romance O Invasor, foram implementadas pelo diretor e o que essas alterações geraram em termos de economia ou gasto de recursos. Será que algumas passagens foram alteradas, negligenciadas ou acrescidas durante a transposição do meio escrito para o fílmico?

A comparação aqui realizada entre o romance e sua adaptação fílmica não leva em conta o roteiro existente na segunda parte do livro. O texto foi divido em cenas devido a seu caráter visual. A divisão foi feita segundo um critério espacial, ou seja, quando existe mudança de ambiente pressupõe-se a ocorrência de uma nova cena. Essas cenas nem sempre coincidem com a divisão adotada pelo diretor, sendo esta divisão um dos pontos em estudo.


2. COMPARATIVO CENA A CENA

O primeiro capítulo do livro descreve em detalhes o acerto entre Ivan, Gilberto (Alaor) e Anísio. O encontro ocorre à noite, num botequim. A descrição dos eventos é minuciosa, fazendo menção a detalhes tais como a dificuldade em localizar o bar, o tipo de pavimentação, os outros clientes e a bebida dos recém-chegados. Anísio é descrito pormenorizadamente e caracterizado como nordestino. Ivan tem a iniciativa dos diálogos, que são relativamente longos. O filme é bem mais sintético na condução desta cena, que ocorre, ao que tudo indica, no final da tarde. Ivan e Gilberto são vistos de dentro do botequim. Os dois mostram-se um tanto quanto deslocados na periferia pobre. Gilberto toma a iniciativa de falar com Anísio que, ao contrário do que ocorre no livro, não parece receptivo logo de pronto. Toda a cena ocorre sob o ponto de vista de Anísio, que está sentado à mesa do bar e bebe uma cerveja. Os outros dois não tomam nada. O rosto do matador não é mostrado em nenhum momento, mas percebe-se que não possui sotaque nordestino. A câmera representando o ponto de vista de uma das personagens simplifica a execução da cena, pois, concentrando seu foco no olhar de Anísio, torna-o o eixo principal da seqüência, desviando a atenção de outros detalhes, tais como o ambiente, que foi bastante pormenorizado no livro. Outro detalhe importante, é que Ivan nada fala, o que por si só já é um modo de reduzir a quantidade de diálogos.

A segunda cena do livro ocorre logo após o encontro no bar. Ivan e Gilberto estão conversando no carro do primeiro, que está preocupado, enquanto Gilberto mostra-se relaxado. Surge uma velha tentando vender chocolates, que é ignorada por ambos. É interessante notar que a mulher parece lançar uma maldição sobre eles, o que pode ser interpretado como um sinal de que as coisas não ocorrerão de acordo com o plano dos dois. O filme retrata a seqüência com fidelidade, sendo que a câmera encontra-se posicionada no banco de trás do veículo, o que dá um forte caráter de proximidade à cena. A velha, contudo, não é mostrada, o que aniquila o presságio existente no livro. Sua ausência reduz o tempo total da seqüência, dando mais agilidade à mesma.

No livro, quando Ivan e Giba descem do carro, estão numa rua deserta, com sobrados geminados. Numa dessas casas, aparece uma mulher com a qual Giba conversa. Eles entram no sobrado e há muitas garotas, talvez menores de idade. Giba sai com duas delas, mas antes fala para Alessandra (Mirna) ficar com Ivan. No quarto, ele a vê urinar. Ela lhe mostra sua tatuagem, o que o faz lembrar seu pai, que possuía um misterioso desenho no ombro esquerdo. A cena de sexo oral é descrita com detalhes, bem como o diálogo entre os dois. No filme, o bordel é elegante, com manobrista e segurança na porta. A entrada de ambos na casa é mais detalhada que no livro. Eles pegam duas chaves de quarto. O bordel parece mais uma boate por dentro, com muitas luzes e repleto de gente. Giba fica uma garota e chama outra para Ivan, a Alessandra. Ela aparece mais sensual do que o descrito no livro. A cena de sexo oral é apenas sugerida – o que reduz bastante o tamanho da cena, caso o livro fosse seguido à risca – e a seqüência toda é muito breve. Não há diálogo entre os dois, ela não aparece urinando e não há nada sobre o pai dele.

Ivan acorda no bordel, no quarto com Alessandra. Ele se lembra de um sonho e, ao sair, Alaor/Giba o espera, conversando com a mulher e as garotas. Ivan se propõe a pagar pelo programa, mas a mulher não aceita. No filme, essa seqüência simplesmente não existe.

É final de madrugada durante a quinta cena do livro. Ivan deixa Giba numa estação do metrô, pois já está amanhecendo. Ele descobre que o sócio é dono do puteiro, juntamente com o Norberto, e Giba diz que não há mais volta para o que decidiram fazer. A cena do filme é muito parecida, mas há um flashforward de Ivan chegando em casa, logo no início da seqüência. Ivan deixa Giba em casa. O diretor parece ter querido exibir a felicidade de Giba ao ver que o assassinato estava encaminhado. Ainda está escuro quando o portão do prédio é aberto.

Na sexta cena do livro, Ivan chega em casa, toma banho, observa sua esposa Cecília dormir e reflete amargamente sobre seu casamento acabado. Ele se veste e sai do quarto. No filme, Ivan chega a casa, tira a revista que está com Cecília, cobre-a com o lençol e apaga a luz. Senta-se numa cadeira e põe a cabeça entre as mãos, demonstrando preocupação. Existe aí uma divergência. Possivelmente o diretor optou por mostrar Ivan sentado, tenso, para tentar fazer o leitor captar seus pensamentos, que não podem ser expressos em palavras, como no livro.

Na cena sete, Ivan e Estevão têm uma conversa sobre a situação da empresa. Enquanto eles dialogam, Ivan imagina vários modos distintos que poderiam ser utilizados por Anísio para matar o seu sócio. Estevão diz para Ivan que a idéia do contrato com o governo veio de Gilberto e Ivan confirma, apesar de não ser verdade. O sócio majoritário diz que vai comprar a parte de Giba, que está envolvido com prostituição, e propõe a Ivan sua permanência na construtora. Os diálogos são longos e os pensamentos de Ivan transparecem durante a narrativa. O diretor buscou passar ao espectador toda essa carga dramática através de planos muito próximos, filmados sobre o ombro de cada um dos interlocutores, onde a expressão de cada ator, principalmente a de Marco Ricca, tenta mostrar os complexos sentimentos descritos no livro. Apesar de bem sucedido em parte, esse estratagema falha por não conseguir expressar em sua totalidade a mente de Ivan, que demonstra frieza e insinceridade maiores no livro que no filme. A adaptação cinematográfica reduziu a quantidade de cenários imaginados por Ivan sobre a forma como Estevão seria morto por Anísio, o que reduz o tempo total da seqüência.

Na oitava cena, Ivan aparece como um engenheiro de escritório, desajeitado ao caminhar por um canteiro de obras. Esse aspecto não é mostrado no filme, bem como a existência de um outro funcionário, um rapaz, que está se lavando no início da cena. Em nenhum momento a divisão de tarefas entre os sócios da empresa é comentada no filme, mas fica claro que Ivan trabalha internamente na construtora, com cálculos e orçamentos, enquanto Giba é um homem de campo. No livro, a placa da empresa mostra primeiramente o nome de Alaor, depois o de Estevão e, por fim, o de Ivan, ou seja, em ordem alfabética. No filme, Giba relembra a briga para saber quem ficaria com o nome por último, sendo que prevaleceu o poder de Estevão, seguido de Gilberto.

A relação entre Gilberto e Ivan no filme é bastante interessante, sendo que o primeiro está sempre cercando Ivan, tocando nele, falando com grande proximidade, como que para intimidá-lo, dominá-lo. Ivan surge com alguém fraco, manipulado por Giba. Aliás, o tipo de serviço de Alaor/Gilberto demonstra como ele é forte, pois tem que controlar peões de obra, gente por vezes indisciplinada e que gosta de testar a força de quem os comanda. Giba diz que Ivan não teria estômago para isso, do mesmo modo que não teve para outras coisas. No livro, o autor descreve uma mulata que passa empurrando um carrinho de bebê. Dá também detalhes acerca do biotipo da criança. No filme, a passagem da mulata é mais breve, apesar da troca de olhares entre ela e Giba continuar a existir, e a criança não é vista. O encarregado dando em cima da mulata também não faz parte da adaptação fílmica. Outro ponto importante é que no filme nenhum dos dois comenta ter recebido uma proposta do Estevão para permanecer na companhia. Outro detalhe que merece destaque por não aparecer no filme é que não existe nenhuma referência ao fato de Rangel ter tido um caso com Silvana, a mulher de Estevão, na época da faculdade. A ausência desses detalhes reduz o tamanho das seqüências e dá agilidade à adaptação fílmica.

O capítulo 5, correspondente à cena 9, do livro inicia-se com a descoberta dos corpos de Estevão e Silvana, dentro do porta-malas do carro. Depois há um flashback em que o doutor Araújo, pai de Estevão, presta queixa à polícia sobre o desaparecimento do filho. Ele pensa tratar-se de um seqüestro. Ivan está nervoso e vai encontra-se com Giba num restaurante, onde comentam o desenrolar dos acontecimentos. No filme, há uma seqüência intermediária em que aparecem os três sócios na noite anterior ao crime. Giba está contando a história dos três porquinhos à sua filha, Estevão joga bola com os amigos e avisa que vai jantar com a mulher, enquanto Ivan está no bar que costuma freqüentar, com aparência atormentada. Essa agilidade propiciada pela montagem em paralelo permite que possamos comparar as atitudes, num dado instante, de pessoas que estão em locais diferentes. Na manhã seguinte, Ivan chega ao escritório e nota a ausência de Estevão. Liga para Giba e este recomenda que ele continue trabalhando normalmente. A secretária, Lúcia/Márcia, informa a Ivan que o doutor Araújo foi à polícia e pede sua presença. Na delegacia, ele encontra o pai de Estevão e sua filha, Marina. A seguir, Ivan vai almoçar com Giba. Novamente o diretor posiciona a câmera sobre o ombro de um dos interlocutores, no caso, o de Giba. Com isso, é possível observar atentamente as reações de Ivan, que demonstra temor e impaciência. Em seguida, Ivan está em casa, sua mulher chega e lembra-lhe de uma festa. Ele diz que não irá, pois está preocupado com o sumiço de Estevão. Seu casamento está praticamente falido. Em contraste, Giba aparece transando com a esposa quando sua filhinha entra no quarto com medo de um pesadelo. Ele parece um pai exemplar. Cecília, a esposa de Ivan, retorna da festa, vai ao banheiro, retira a maquiagem e chora. Ela vai se deitar. Ivan está na cama, de costas para a entrada do quarto e de frente para a câmera, fingindo dormir. Na madrugada, Ivan liga para Giba informando que os corpos foram encontrados. A trilha sonora da cena em que os cadáveres são encontrados é composta por uma música muito violenta, um rock pesado. Os corpos não aparecem. Quando eles chegam, o rabecão já está conduzindo os cadáveres. Ivan demonstra perplexidade, ficando estático. Giba finge grande sofrimento. No velório, Giba continua o seu disfarce. Como se pode observar, essa seqüência aparece muito mais detalhada no filme. O livro descreve tudo em poucas páginas, enquanto o diretor gasta um bom tempo criando o clima do duplo homicídio, exibindo o comportamento dos três amigos antes e depois de constatado o crime.

No início da décima cena, Ivan descreve a cara-de-pau de Giba durante todo o transcorrer da descoberta dos corpos e do velório. O delegado Junqueira vai à construtora falar com os sócios de Estevão. Eles fingem não ter nada a ver com o ocorrido. Parece não haver nenhuma suspeita sobre eles. Essa seqüência é omitida no filme. Aliás, esse delegado não aparece em nenhum momento.

A cena seguinte, de número 11, apresenta Ivan em seu bar predileto. Ele se recorda de quando Giba propôs a morte de Estevão. Ivan conhece Paula, leva-a a um motel. No filme, o encontro entre os dois ainda não ocorreu. O diretor insere primeiramente a aparição de Anísio.

Na cena 12, Ivan deixa Paula em frente a um prédio e vai para a construtora. Durante o expediente, Anísio aparece na empresa. Ele traz consigo pertences do casal. Ivan e Giba entram em pânico, dizem que darão o dinheiro no dia seguinte em outro lugar. Anísio disse que passará na construtora para receber. Começam a surgir os primeiros indícios da invasão. No filme, a seqüência se inicia com a câmera em movimento indo em direção à construtora, passando por vários compartimentos e terminando na sala de Ivan. O olhar da câmera é o do personagem Anísio invadindo o lugar. Ele veio receber o dinheiro na empresa, o que deixa os dois perturbados. Eles pagam o assassino e este sai. Essa cena é parecida com o conteúdo do livro, a não ser pelo olhar da câmera, ou de Anísio, entrando no universo dos dois sócios. O filme mostra, a seguir, Giba e Norberto no bordel. Giba demonstra preocupação com a fraqueza do sócio. Essa seqüência não é narrada no livro. Enquanto isso, Ivan está no bar de costume. Lá, ele conhece Paula. Todo o diálogo que o autor criou entre ambos é sintetizado pela divisão do fogo do cigarro (o isqueiro de Ivan não funcionou) e pela história das cores das bebidas.

A cena 13 do livro mostra Ivan e Paula passando um final-de-semana numa casa de praia. Essa cena aparece mais tarde no filme.

No capítulo iniciado com Ivan e Paula no litoral existe um flashback da segunda aparição de Anísio na construtora, o que seria a cena 14. Ele veio receber seu dinheiro. No filme, deve-se lembrar que o pagamento ocorreu na primeira visita do bandido. Voltando ao livro, Anísio começa a intrometer-se na vida dos dois: pede que guardem o dinheiro, sugere que talvez precisem dele, quem sabe como segurança. Essa sugestão ocorre posteriormente no filme. Giba aceita a proposta de Anísio permanecer como segurança. Retornando ao filme, Giba chega à empresa e encontra Anísio na ante-sala de Ivan, conversando com a secretária. Na conversa entre os três, Anísio sugere ajudá-los com a segurança. Nada fica acertado.

Na cena 15 do livro, Anísio faz a terceira visita e é nesse momento que ele conversa com a secretária (Márcia/Lúcia). Anísio, na verdade, já está trabalhando na empresa. O flashback termina e Ivan está convidando Paula para passa o fim-de-semana na praia.

A cena 16 do livro apresenta Ivan no aeroporto, retornando de Brasília, onde encontrou-se com Rangel. Ele vê o delegado Junqueira e imagina estar sendo seguido. Não há menção a essa passagem no filme.

Na cena 17, Ivan fala de seus temores para Giba, que fica possesso. Ambos encontram-se com Marina e o Dr. Araújo na sala de reuniões. Ela não demonstra muito interesse pelos assuntos da empresa. É mencionado um envolvimento prévio da menina com drogas. Ivan vê Anísio e Marina conversando no estacionamento da construtora. Ela ria, ele encostava nela. No filme, Marina e o avô estão acompanhados de um advogado. Anísio passeia bisbilhotando pelas dependências da construtora. Parece muito à vontade, quase como se fosse um dos sócios. Ele chega a mandar um funcionário apagar correções feitas a lápis num projeto. Marina também sai para fumar um cigarro. Do lado de fora, ela encontra Anísio e fica fascinada pelo modo como ele controla um cachorro de aparência agressiva. A atitude dele é a chave de seu sucesso com ela. Ele a faz pegar no cachorro. O foco da narrativa direciona-se cada vez mais para o bandido, que passa a disputar o protagonismo com Ivan.

A cena 18 do livro exibe Ivan, Giba, Dr. Estevão e Marina almoçando num restaurante. Eles não almoçam juntos no filme.

Ivan fala para Giba, na cena 20, que deseja fazer uma varredura nos telefones em busca de escutas. Demonstra temor com relação ao futuro. Giba tenta acalmá-lo, sem sucesso. Não existe essa passagem no filme. Por outro lado, o filme mostra algo inexistente no livro: Ivan indo falar com Giba em uma obra, cobrando satisfações do sócio por uma negociação feita com o Rangel sem o seu conhecimento. Aqui, como no livro, Giba menciona que as investigações foram encerradas. Ele comenta que Ivan tem estado muito ausente da construtora. Ivan, no andar mais alto do prédio, parece estar no topo do mundo, mas encontra-se, na verdade, no fundo de um abismo. Logo a seguir, ele aparece fazendo sexo ferozmente com Paula. Ele diz que vai deixá-la em casa, apesar dela querer ficar no metrô. Essa carona possivelmente corresponde àquela mencionada na cena 12 do livro.

Na cena 20, Ivan chega para trabalhar cedo pela manhã e vê Anísio sendo trazido à construtora por Marina, ambos de cabelo molhado. Trocam beijos. A seqüência do romance entre Marina e Anísio é a mais longa do filme, sendo aqui mencionada em apenas dois parágrafos. Anísio vai à casa de Marina com um cachorro debaixo do braço para presenteá-la. Eles conversam muito, fumam maconha. Anísio fala coisas sem nexo. Após algum tempo, decidem sair. Pegam o carro de Marina e percorrem a periferia pobre da cidade. Vão a um salão de beleza no qual Anísio tenta, em vão, fazer Marina ser atendida. Vão parar num botequim “boca de porco”, freqüentado normalmente pelo bandido. Há um rapaz vestindo um agasalho com os dizeres “Terror na periferia”. Anísio pede uma maria-mole para Marina. Ela mistura a bebida com cerveja. Ele demonstra familiaridade com o ambiente e domínio da situação. Sua atitude cativa a garota. Anísio compra cocaína, eles voltam para o carro, chegam a um local alto e ermo, cheiram o pó e transam, sem camisinha. A cena seguinte mostra Ivan e Paula no litoral, como mostrado na seqüência 13 do livro. É interessante notar que o autor se refere ao bico dos seios de Paula aparecendo por baixo da roupa e o mesmo é mostrado no filme (com a Malu Mader). Chegando para trabalhar, Ivan flagra Anísio e Marina no carro, aos beijos.

Na cena 21, Ivan visita sua mãe, velha e deprimida. Ele pergunta porque seu pai se matou e a mãe, a princípio, não responde. Quando Ivan está indo embora, ela fala que seu pai era um fraco. Ivan sabe que também é. Essa cena não aparece no filme, do mesmo modo que diversas passagens com Ivan. Ele vai sendo meio que deixado de lado, enquanto Anísio ganha espaço.

O escritor usa um flashback para apresentar a cena 22, em que Anísio traz um amigo seu para pedir dinheiro emprestado aos sócios. No livro, é um mulato barrigudo que deseja abrir um bar na periferia. No filme, Anísio traz o rapper Sabotage, que precisa de uma ajuda para gravar um CD. O diretor aproveita a deixa para colocar perto do espectador um ator representando ele mesmo. Por ser um cantor pertencente à cena musical da periferia, Sabotage enquadra-se bem no papel, dando bastante veracidade à história, inclusive fazendo lembrar que Anísio também é interpretado por um músico, Paulo Miklos. É interessante notar o comportamento extremamente educado do cantor, beijando a mão da recepcionista. Durante a apresentação da música, a expressão nos rostos de Marco Ricca e, principalmente, Alexandre Borges é impagável, demonstrando toda a inadequação do que está ocorrendo. Sabotage fala: “O cara tá desgostoso da vida e não curte um rap”. É interessante observar o olhar de vitória e desafio que Anísio lança sobre Ivan enquanto Giba preenche o cheque. O rapper parece realmente constrangido. Anísio fala que a sociedade está estabelecida entre eles. Giba parece em choque.

Durante a cena 23, Ivan e Paula estão num motel. Ele a convida para fugir, ir para o nordeste. Essa conversa ocorre posteriormente no filme.

Na cena 24, Ivan encontra Giba num restaurante e avisa que deseja sair da construtora. Giba diz que Ivan não pode sair.

Ivan chega em casa, na cena 25, e percebe que Cecília não está mais. Liga para ela e confirma que havia ido embora, para a casa da mãe.

A cena 26 mostra Ivan lendo um jornal e descobrindo que o agiota para quem eles deviam dinheiro havia morrido. Ele imediatamente desconfia de Giba e Anísio. Ivan procura o sócio em sua sala e eles brigam. No filme, Ivan procura Giba em sua academia, o que o exaspera bastante. Eles também se desentendem.

Na cena 27, Ivan vai à casa do segurança do bar que freqüenta – um homem negro que mora num cortiço – para comprar uma arma. No filme, eles vão a um karaokê, freqüentado especialmente por orientais. O sujeito que está cantando, provavelmente descendente de japoneses, repete o seguinte refrão: “Não tenho rosto / Nada do que você possa se lembrar depois”. É curioso notar que o homem parece apontar na direção de Ivan, como se quisesse dizer algo. Pode-se dizer que o diretor deseja passar para seu personagem um tipo de remorso como o sofrido por Raskólnikov, de Crime e Castigo. Ivan consegue a arma com um funcionário do bar. Ele aparece num quarto de motel, deita-se na cama com a arma e tem uma crise de pânico. Ivan está totalmente fora de controle. Paula está se vestindo na seqüência seguinte. Enquanto Ivan toma banho, ela descobre a arma e fica bastante alarmada. Nesse momento ele propõe a fuga, indo para o nordeste, tal como aparece na cena 23 do livro. Paula está extremamente desconfortável com a situação e tenta descobrir o que Ivan planeja.

Em flashback, Anísio convoca Ivan para um churrasco na cena 28. Ele o intimida. Ivan decide, neste momento, comprar o revólver. No filme, a próxima seqüência narrada pelo diretor apresenta Anísio numa obra tentando acabar com pequenos furtos realizados pelos peões. Ele briga com um deles, que tem a chave do almoxarifado. Giba chega e pergunta quanto Anísio quer para sumir e este responde que “tá gostando”, que não há conta bancária que o tire de lá. A seguir, aparece Ivan no escritório falsificando uma assinatura, supostamente a de Giba. Anísio entra e o convida para uma reunião com os peões, possivelmente um churrasco, incluindo futebol.

A seguir, é mostrada detalhadamente uma balada entre Anísio e Marina. Ela está em casa com o cabeleireiro. Ele toma banho, veste-se, e fala sozinho, gesticulando e fazendo cara de mau: “Atitude, mano!”; “Pau no seu cu, filho da puta!”; “Clack, clack, bum!”, lembrando a música “Mano na porta do bar”, dos Racionais; “Respeito é pra quem tem!”, de Sabotage, olhando diretamente para a câmera, sua comparsa.

Na cena 29 do livro Paula descobre a arma de Ivan, no motel. Ele reitera o convite de fuga. A seqüência respectiva no filme foi descrita duas cenas atrás.

Ivan está à espreita na entrada do edifício de Paula, na cena 30. Ele a espera para fugir. Essa cena acontece posteriormente no filme. Ivan interfona, não encontra ninguém com o nome de Cláudia. Esta aparece num bar, tentando falar ao celular com Giba.

Durante a cena 31 inicia-se um flashback. Ivan está na empresa, realizando um desfalque na construtora pela internet. Olha pela janela e vê Anísio encostado em seu carro. Na hora de partir, Anísio fala para ele levar Paula ao churrasco. Essa cena não ocorre no filme.

Na cena 32, Ivan está em casa, preparando-se para fugir. Ele ouve ruídos, acha que o estão seguindo. Cecília entra lá, assusta-se. Ivan vai embora. O flashback iniciado na cena 31 termina.

Durante a cena 33, Ivan aproveita-se da entrada de um casal de idosos no prédio e os acompanha. Ele encontra o apartamento, força a porta. Há fotos de Paula na parede. Ele vê a conta do celular e encontra o número de Giba, várias vezes. Encontrou fotos de Paula/Cláudia em poses sensuais, como num book. Percebe que ela fora contratada. Verificou as mensagens na secretária eletrônica. Havia uma de Giba. Este dá a entender que ele cuidaria de Ivan. Ele decide matar Giba e Anísio e sai alucinado pela cidade. No filme, Ivan aproveita a entrada de um grupo de amigos no prédio e os acompanha. Usa as escadas, não há elevador, como no livro. Arromba a porta. Reconhece as roupas dela pelo cheiro. Vê fotos. Ouve a secretária eletrônica, com o recado de Giba. Seu nome é Fernanda. Ele fica transtornado. Escreve um bilhete e o cola, juntamente com duas fotos, na tela da TV. O bilhete diz: “Eu te mato”. Na seqüência, aparece a continuação da balada de Marina e Anísio. Eles estão num bar. Um rapaz fala com Marina e ela o apresenta a Anísio. O rapaz faz pouco caso do bandido, que vai tomar satisfações, amedrontando o garoto. Novamente, demonstra atitude.

Na cena 34, Ivan dirige pela cidade, com os sentidos embotados. Busca o prédio de Giba, que não está. No filme, Ivan também dirige-se à portaria de Giba. Destrata o porteiro, liga pelo celular para a esposa de Giba e diz que o está procurando. Paula volta ao apartamento e percebe o que aconteceu. Marina e Anísio saem do bar. Ela lhe dá um comprimido, provavelmente de ecstasy, e toma outro. Dançam freneticamente numa boate. No início, Anísio não dança, desambientado. Marina começa um lance com outra garota. Anísio parece tomar seu comprimido neste momento e cai na festa.

No livro, na cena 35, Ivan sai à procura de Giba no puteiro. Ele está transtornado. Chuta uma porta com violência. É dominado por um segurança. Norberto sai pela porta. Ivan é jogado para fora da boate e percebe que seu pé está quebrado. No filme, Ivan também vai ao bordel. Causa confusão e é arrastado por dois seguranças. Paula encontra Giba na frente de seu prédio e o avisa da situação. Eles saem no carro.

Na cena 36, Ivan resolve voltar para o prédio de Giba. Bate numa caminhonete. Dois rapazes saem do carro. Ivan aponta o revólver para os dois, que vão embora. O carro de Ivan está danificado e ele sai a pé, mancando. Caminha um bom tempo e consegue um táxi. No filme, essa cena é intercalada com Anísio fazendo sexo com Marina e a garota da boate. A seguir, Anísio aparece com Giba na sala da casa de Estevão. Giba está apavorado. Anísio mostra sua atitude tranqüila, confiante. Giba fala para Anísio matar Ivan. Este diz que não faz mais este tipo de serviço. Agora, manda fazer. Anísio recomenda que Giba faça o serviço ele mesmo. Giba insinua que Ivan pode entregar tudo para Marina. Anísio não se intimida. Ivan bate o carro. Ele se desentende com os dois rapazes e aponta a arma para eles. Os dois vão embora. Ivan sai a pé, pela periferia, aturdido. A cena não é curta e a trilha sonora bastante contundente.

Ivan está na delegacia durante a cena 37. Conta tudo. O escrivão não toma notas. Chama um investigador e os dois decidem procurar o delegado. No filme, aparece um close de Ivan contando toda a história. Mostra todo o seu desequilíbrio emocional e também sua fraqueza. Suas falas são cortadas durante a edição, o que dá um efeito de confusão mental maior. Cita o nome do Norberto.

Na última cena, a 38, está amanhecendo. Ivan encontra-se numa viatura. Eles chegam em frente à casa de Estevão. O carro de Giba está lá. O delegado Norberto espera Anísio e Giba saírem. Ele aponta a viatura em que Ivan se encontra. Anísio apresenta um olhar de vitória sobre Ivan. Norberto manda que eles resolvam o problema e vai embora. Ivan pensa em Paula. “O investigador ligou o motor da viatura. Eu abri os olhos”. Termina o livro. No filme eles também chegam à casa de Estevão. Anísio sai de roupão, seguido por Giba. Este toma um “cagaço” de Norberto. Anísio olha para Ivan com um misto de desprezo, superioridade e violência. Giba passa toda a cena com cara de palerma. Norberto fala para darem um jeito em Ivan. Giba e Anísio se entreolham, sabendo o que terão de fazer. Marina rola na cama. O cachorro está próximo a ela, no chão. Termina o filme.


3. CONCLUSÃO

A mudança no foco narrativo, que passa de um narrador em primeira pessoa no livro para um em terceira no filme, ocasiona uma série de alterações no modo de contar a história. Aliadas a isso, existem as diferenças inerentes aos meios de expressão. No livro, há a possibilidade de uma maior exploração da condição psicológica das personagens, enquanto o filme proporciona uma grande agilidade, já que uma seqüência visual pode resumir páginas e páginas de texto escrito.

Uma das alterações que podem ser percebidas é o crescimento do personagem Anísio no filme em comparação ao livro. Como no texto escrito o narrador é Ivan, este passa a ser, naturalmente, o centro das atenções. Todos os acontecimentos são filtrados pelo seu olhar. No filme, a câmera observa as personagens “de fora”. Ivan passa a ter um peso bem menor na narrativa, apesar de ainda ser o protagonista da história. Anísio, em contrapartida, cresce bastante no decorrer da obra cinematográfica. Pode-se até dizer que ele, num dado momento, capta para si toda a atenção do espectador.

Posto isso, o diretor faz várias alterações em sua adaptação fílmica. Diversas passagens recordadas por Ivan são suprimidas. Pode-se citar, por exemplo, as que se referem ao delegado Junqueira, ou a seus pais. Por outro lado, Anísio ganha destaque. Suas aparições com Marina são bastante detalhadas, enquanto surgem apenas mencionadas no livro. Pode-se dizer, inclusive, que há momentos em que Ivan é substituído por Anísio como narrador em primeira pessoa. Isto ocorre em dois momentos: logo no início, quando os sócios vão contratar o assassino, Anísio não aparece e a câmera representa o seu olhar; o mesmo acontece quando ele está chegando à construtora pela primeira vez: a câmera são os seus olhos enquanto caminha pelas dependências do prédio.

Há, ainda, outros exemplos de alterações geradas pela adaptação do livro ao cinema. Um deles é a busca por economia, ocasionada, inclusive pelos problemas orçamentários de uma produção cinematográfica. Nessa tentativa de sintetizar a linguagem literária, diálogos são encurtados, seqüências alteradas ocasionando a supressão de certas passagens, repetições são extintas. Outra alteração visível é a possibilidade de aproveitar diferentes talentos do elenco para enriquecer ainda mais o texto e aproximar o espectador. Exemplos disso são a presença de um ator músico como bandido – o que visivelmente traz alterações no linguajar de sua personagem, bem como a adequa, devido a sua experiência de vida, aos ambientes por ela percorridos – e de um outro músico representando ele mesmo – o que, sem dúvida, transmite maior realismo à obra e causa impacto positivo na audiência.

É possível mencionar, ainda, algumas táticas empregadas pelo diretor na busca por exprimir adequadamente no cinema – meio de expressão predominantemente visual, em que pensamentos não são tão fáceis de descrever – os tormentos psicológicos das personagens. Uma delas seria a utilização de planos muito fechados, mostrando os rostos dos atores em close. A câmera é freqüentemente posicionada sobre o ombro de um dos interlocutores, exibindo detalhadamente suas expressões. Esse primeiro plano é utilizado em vários momentos, numa tentativa de passar para o espectador o que cada um está sentindo.

Outras maneiras de expressar a tensão que perpassa toda a narrativa são a câmera ágil, muitas vezes empunhada sem suporte; a exibição de determinadas seqüências buscando a confusão, o delírio, através de montagem em paralelo, do uso de flashback e flashforward e da inserção de eventos imaginários; da luminosidade difusa, colorida e vibrante de bares, boates, casa de karaokê e de um bordel; por fim, de uma trilha sonora agressiva, contundente. Todas essas ferramentas, que estão à disposição do diretor, ajudam a criar o clima de tensão, rapidez e violência expresso de outro modo no texto escrito. É preciso mencionar, contudo, que o escritor pode fazer uso dessas mesmas ferramentas empregadas pelo cinema, principalmente o ir e vir temporal, a montagem paralela e os cortes bruscos de cenas.

Por fim, pensando em tradução como recriação, pode-se afirmar que Beto Brant, lançando mão de recursos técnicos inerentes ao cinema, muita criatividade e sensibilidade, conseguiu transpor para a tela o clima tenso, violento e sem esperança do drama urbano descrito por Marçal Aquino. A adição de algumas cenas, a supressão de outras, a redistribuição do peso das personagens e a originalidade na montagem foram alguns dos recursos empregados pelo diretor, os quais alteraram, obviamente, a obra original. Seria, claro, impossível pensar que tal não fosse ocorrer, já que buscar fidelidade cega não condiz com liberdade criadora e, certamente, conduziria ao fracasso qualquer tentativa de adaptação. Disto fugiu a equipe em questão, pois soube retirar a essência de um livro e transpô-la para outro objeto artístico, de valor não inferior ao primeiro, e que, visto em conjunto com a obra original, sem dúvida enriquece a experiência de fruição estética do leitor/espectador.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

LITERATURA E CINEMA - DECUPAGEM


Decupagem de Momento no Café, de Manuel Bandeira


Este é um pequeno exercício sobre como criar uma seqüência fílmica baseada em um determinado texto, como um poema.

- PLANO 1
Exterior, final de tarde, rua em frente ao café.
Plano geral. Visão de um cortejo fúnebre passando: caixão sobre um carro empurrado manualmente; viúva chorando com a cabeça coberta e um terço nas mãos; pessoas de preto; padre com turíbulo.
Ruídos: sons da rua abafados gradativamente pela ladainha.
Música: ladainha crescente.

- PLANO 2
Exterior, calçada em frente ao café.
Plano geral. Parte frontal do café. Câmera em zoom para um plano de conjunto de um grupo de cinco homens sentados à mesa. Eles estão vestidos ao estilo dos anos 1950, inclusive com chapéus.
Música: samba canção abafado pela ladainha crescente.

- PLANO 3
Exterior, rua em frente ao café.
Plano médio. Câmera em travelling, ligeiramente em plongée, mostrando o esquife em movimento.
Música/ruído: ladainha em volume alto.

- PLANO 4
Exterior, calçada em frente ao café.
Plano médio. Cada um dos homens à mesa é mostrado pela câmera em travelling, ligeiramente em contra plongée. Todos saúdam o corpo com ar distraído e confiante, à exceção de um deles.
Música/ruído: ladainha em volume alto.

- PLANO 5
Exterior, rua em frente ao café.
Plano médio. Câmera em travelling, ligeiramente em plongée, mostrando o padre e, depois, a viúva em movimento.
Música/ruído: ladainha em volume alto.

- PLANO 6
Exterior, calçada em frente ao café.
Plano americano. Mostra o homem que ainda não havia saudado o morto iniciar um gesto longo e lento de tirar o chapéu.

- PLANO 7
Exterior, rua em frente ao café.
Plano americano. Câmera em travelling, ligeiramente em plongée, para trás acompanhando o avanço da viúva. Zoom em direção ao rosto da mesma até atingir o primeiro plano. Detalhe do sofrimento da mulher, que mal consegue entoar a música.
Música/ruído: ladainha em volume alto.

- PLANO 8
Exterior, calçada em frente ao café.
Primeiríssimo plano. Fixado no rosto do último homem a cumprimentar o morto. Seu olhar demonstra concentração em determinado pensamento, semblante filosófico. O rosto se move acompanhando o movimento do cortejo. Zoom para plano de detalhe focalizando seus olhos.
Música/ruído: ladainha perdendo força, dando lugar ao pensamento do mesmo transformando-se nas seguintes palavras:
- Agitação feroz e sem finalidade é a vida. Toda ela uma traição. Lá se vai a matéria de um homem, liberta de sua alma extinta.

- PLANO 9
Exterior, calçada em frente ao café.
Plano geral. Cortejo é mostrado por trás, distanciando-se, com a câmera fixa na posição dos homens no café.
Música: ladainha vai diminuindo e o samba canção volta a ganhar força.

Momento no Café

Poema de Manuel Bandeira

MOMENTO NO CAFÉ

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade

Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

LITERATURA E HISTÓRIA - ENSAIO


O POEMA DE SETE FACES E ALGUNS HERDEIROS


1. Introdução

Jorge Luis Borges escreveu, em seu ensaio Kafka e seus precursores, que “cada escritor cria seus precursores”. Os de Kafka, elencados por Borges, seriam, entre outros, o grego Zenão, o chinês Han Yu (século IX), Kierkegaard (fato já bastante conhecido), Browning, Léon Bloy e Lord Dunsany. Segundo o argentino, é possível encontrar traços de Kafka em textos de cada um dos citados, sendo que estes escritos nem sempre se parecem entre si. Se o autor de A Metamorfose não tivesse sido publicado, essa similaridade jamais seria percebida. A leitura de um poema de Browning é afinada e desviada pela leitura de Kafka. O próprio poeta não lia seu texto, então, como o lemos hoje. Borges afirma que o trabalho de um escritor “modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro”.

Com esse pensamento, Borges inverte a ordem tradicionalmente estabelecida de que um autor é influenciado pelos seus precursores, propondo que um grande escritor recria o passado, iluminando textos de outros períodos e lugares. Assim, através da leitura de Kafka, estaríamos aptos, ou fadados, a ler obras mais antigas com um outro olhar, o de alguém que já vislumbrou o universo kafkiano e foi por ele modificado. Na verdade, alguns autores até então considerados de segunda linha poderiam ter suas obras relidas através de uma ótica distinta e suas criações passariam a ganhar mais valor para os críticos.

Pensamento semelhante pode ser encontrado na historiografia moderna e até mesmo nas ciências naturais. Neste último caso, um livro chamado Maya, do escritor Jostein Gaarder, trata, entre outras coisas, da evolução das espécies, discutindo se houve um propósito para tantas mutações, se há algum significado por trás dessas transformações. Ele indaga se um espectador presente na Terra milhões de anos atrás seria capaz de imaginar que aquelas criaturas evoluiriam para seres dotados de consciência, capazes de questionar sua presença no universo, bem como sua origem. Não seria a existência desses seres primitivos explicada pela necessidade da produção de criaturas mais evoluídas? Por conseguinte, não seria a nossa presença no universo explicável por alguma necessidade futura, inevitável? Assim, nossa existência atual explicaria o passado, do mesmo modo que Kafka ajuda a olhar seus antecessores por um ângulo diverso.

Do mesmo modo, o século XX produziu uma abordagem nada tradicional da história. Desde tempos longínquos costuma-se esticar o fio do tempo e nele encadear eventos, pessoas, civilizações. O passado seria algo imutável, perfeitamente determinado, tendo seus fatos explicados através de critérios tidos como objetivos. A novidade trazida no século passado seria a percepção de que a história depende fundamentalmente de quem a interpreta, de seu ponto de vista social e de seus interesses. Entendeu-se, portanto, que história é constantemente reinterpretada, de acordo com novas idéias ou interesses, segundo critérios distintos, ocasionando alterações profundas na percepção do passado. Uma frase, um tanto reducionista, que ilustra bem esse conceito afirma que a história é contada pelos vencedores, indicando que, caso os interesses fossem outros, diferente seria a interpretação dos fatos. Na literatura, George Orwell ilustra bem esse fenômeno de transfiguração histórica no livro 1984, que descreve uma utopia futurista às avessas, onde o mundo é controlado pelo Grande Irmão – o Big Brother, já digerido pela cultura de massas e metamorfoseado em algo totalmente distinto –, um construto social que impõe sua autoridade sobre os cidadãos. Uma das ferramentas utilizadas para controle social é a alteração da história. Segundo os interesses do momento, algumas civilizações seriam tidas como inimigas; em outras ocasiões, os adversários mudam e os antigos inimigos agora são aliados, ou melhor, sempre foram aliados, e as pessoas acabam esquecendo, ou fingindo esquecer, o que passou. Desse modo, a história passa a ser ferramenta de controle, manipulada por critérios políticos. Apesar de se tratar de uma situação hipotética, Orwell talvez receasse que algo assim pudesse ocorrer. Estaria ele de todo enganado?

Do mesmo modo que a história, a literatura também está sujeita a fatores sociais, sendo o autor sempre influenciado pelo meio em que vive, por seu tempo e ideologias em conflito. Assim, é impossível ignorar fatores histórico-sociais no estudo da literatura, sabendo, claro, que estes são apenas componentes do fenômeno estético. Como diria Antonio Candido: “Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno”. Deste modo, os críticos modernos abordam o texto literário como um todo, percebendo sua estrutura e também seu meio formador. Ainda de acordo com Candido:

[...] quando estamos no terreno da crítica literária somos levados a analisar a intimidade das obras, e o que interessa é averiguar que fatores atuam na organização interna, de maneira a constituir uma estrutura peculiar. Tomando o fator social, procuraríamos determinar se ele fornece apenas matéria (ambiente, costumes, traços grupais, idéias), que serve de veículo para conduzir a corrente criadora (nos termos de LUKÁCS, se apenas possibilita a realização do valor estético); ou se, além disso, é elemento que atua na constituição do que há de essencial na obra enquanto obra de arte (nos termos de LUKÁCS, se é determinante do valor estético).

Tendo o contexto histórico-social em mente, será feita aqui uma análise comparativa de trechos do Poema de Sete Faces, de Carlos Drummond de Andrade, com alguns outros poemas que, aparentemente, surgiram para com ele dialogar. Esses seriam Let’s Play That, de Torquato Neto e Com Licença Poética, de Adélia Prado. Vale ressaltar que serão úteis também as idéias acerca de paródia e paráfrase levantadas por Affonso Romano de Sant’Anna.


2. Intertextualidade e o Poema de Sete Faces

É rica a possibilidade de análise intertextual tendo como referência o Poema de Sete Faces, já que muitos autores posteriores a Drummond utilizaram sua idéia como referência para a elaboração de seus trabalhos. Na Internet, foi possível localizar rapidamente uma análise semiótica dos textos citados anteriormente, substituindo-se o poema do Torquato Neto por um de Orides Fontela, CDA (Imitado), e outro de Chico Buarque de Hollanda, Até o fim. Sua autora é Marta Pereira de Oliveira e ela lança mão das idéias de Greimas acerca do percurso gerativo do sentido. No final de seu trabalho, faz referência a dois outros escritores que dialogam com o texto de Drummond: Sidney Olívio, com Anjo, e Maria das Graças Paulino em “Aquelas Sete Faces”. Como é possível perceber, a herança do Poema de Sete Faces é bastante extensa e as possibilidades de análise intertextual muito vastas.

O poema de Drummond inicia-se da seguinte maneira:

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

Drummond é classificado como um poeta modernista e o período em que publicou o texto em questão, 1930, localiza-se no entre guerras. O mundo vivia, então, a grande depressão, caracterizada por desemprego em massa e economia estagnada. Havia um mal-estar no ar, ainda mais com a ascensão de governos autoritários pelo mundo (inclusive no Brasil) e o sentimento de que uma nova guerra poderia ocorrer. Nesse clima, é fácil imaginar a arte representando atitudes e sentimentos tão díspares como a loucura, a necessidade premente de aproveitamento da vida (a década de 1920 foi batizada como “os anos loucos”), a denúncia da violência e, claro, o pessimismo.

Assim, o pessimismo se apresenta logo de início no texto de Drummond. Logo em seu nascimento, o escritor foi ungido por um anjo torto com um sinal. Só que esse anjo, como ser das sombras, marca o escritor com a sina da tristeza, da esquisitice, da estranheza. Sabe-se que esse é o fado da maioria dos grandes artistas, pois estes apresentam características nada peculiares à maioria da população e tendem a destoar do discurso padrão, mostrando um olhar diferenciado e, freqüentemente, desconstrutivo.

O poeta piauiense Torquato Neto pertence a outro período histórico, situando sua fase produtiva principalmente nos anos 60 do século passado. Essa época foi fortemente marcada por movimentos de contracultura, pela intenção de provocar mudanças, quebrar tradições, desconstruir discursos. Os jovens de então sentiam-se oprimidos pelas rígidas regras sociais a eles impostas e iniciaram uma revolução em diversas frentes: comportamental, sexual e intelectual. No mundo, foi a era marcada pelo festival de Woodstock, pelo desejo de por fim à guerra do Vietnã, pela explosão do Rock and Roll, da liberação sexual e também pelo uso massivo de drogas. No Brasil, Torquato foi um dos criadores do movimento tropicalista, sendo seu estilo marcado, entre outras coisas, pela irreverência, rebeldia e desejo de contestação. Seu poema Let’s Play That mostra alguns desses traços:

Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião

eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes

Let's play that

O anjo que surge para o poeta é principalmente louco, mas também se apresenta como torto, assim como no poema de Drummond. Do mesmo modo que no texto deste, ele vai vaticinar o destino do narrador, só que desta vez através da leitura de sua mão. No entanto, o que caracteriza mais fortemente o poema é a sentença em que o anjo ordena ao poeta que vá “desafinar o coro dos contentes”. Essa é uma frase muito famosa, simbólica, sendo utilizada pelos movimentos de contracultura.

Adélia Prado é mineira, assim como Drummond, e dele teve um grande incentivo no início de sua carreira. Sua poesia é singela, muitas vezes de caráter intimista, falsamente despretensiosa. Ela trata de temas cotidianos buscando torná-los universais. Adélia mencionou certa vez que a realidade em Divinópolis e na China é idêntica, modificando-se apenas o idioma. Com seu olhar feminino e às vezes feminista, observa a vida no interior de Minas e suas peculiaridades. O aspecto religioso é fundamental para a análise global de sua obra.

Seu poema Licença Poética dialoga com o Poema de Sete Faces:

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
...
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.

Através de seu olhar feminino, o anjo que aparece à poetisa não é nem torto, nem louco, mas esbelto. Ele também gosta de profecias e a encarrega de carregar uma bandeira. Ela decide cumprir sua sina, inaugurando linhagens, fundando reinos, escrevendo. Abraça sua dor sem amargura, deixando as queixas para os homens. Mostra-se otimista, afinal, e forte. Diferentemente do que acontece no poema de Drummond, o espírito prático supera a angústia e ela atribui tal fato à sua condição de mulher.

Affonso Romano de Sant’Anna publicou um livro em que discute, entre outras coisas, os conceitos de paráfrase, estilização e paródia. Tomando como princípio as definições elaboradas por lingüistas russos, como Tynianov e Bakhtin, ele busca uma nova abordagem, estendendo o alcance original. Seja na paráfrase, na estilização ou na paródia, existe um elemento em comum: o deslocamento. Na paráfrase, o deslocamento é mínimo, sendo utilizadas as técnicas de citação e transcrição direta. A estilização trabalha com um desvio maior: “Ocorre um jogo de diferenciação em relação ao texto original sem que, contudo, haja traição ao seu significado primeiro”. Na paródia, o distanciamento é enorme, ocorrendo alteração profunda no sentido. Na leitura de uma paródia percebem-se duas vozes: uma em presença, o texto parodístico; outra em ausência, o texto parodiado. Segundo as palavras do autor: “Enquanto a paráfrase é um discurso em repouso, e a estilização é a movimentação do discurso, a paródia é o discurso em progresso”.

Nos textos ora analisados, podemos perceber que, tanto o poema de Torquato Neto, quanto o de Adélia Prado, são exemplos de paródia do Poema de Sete Faces. Uma idéia original é mantida, a do anjo que chega para alguém e o encarrega de uma missão. Entretanto, esse anjo é diferente para cada um dos autores, bem como o vaticínio por ele elaborado. Para Drummond, o anjo é torto. Nos outros dois casos, louco e esbelto, respectivamente.

A atitude dos narradores é completamente distinta nos três poemas, mas suas reações às palavras dos anjos, no entanto, são sempre de aceitação. O primeiro deles percebe-se como um ser estranho, deslocado, quase um pária. O segundo, através da sentença Let’s play that, afirma que realmente buscará desafinar o coro dos contentes. No poema de Adélia Prado, carregar bandeiras foi um fardo aceito, com dor, mas, principalmente, com alegria.


3. Conclusão

O principal objetivo deste trabalho foi realizar uma análise comparativa de determinadas passagens de três poemas – Poema de Sete Faces, Let’s Play That e Com Licença Poética – sendo que o primeiro destes teria influenciado a criação dos outros dois. Este fato torna fundamental a abordagem intertextual, notando o que foi alterado, distorcido, pelas diversas releituras.

Além da análise textual, foi realizada também uma pequena reflexão acerca dos contextos histórico-sociais em que cada obra e autor estavam inseridos, buscando, assim, auxiliar a compreensão dos referidos textos. Seguiu-se assim, a linha de pensamento de autores como o anteriormente citado Antonio Candido, que acreditam essencial a descoberta de fatores que influenciem a estrutura interna da obra.

A partir da análise de trechos dos poemas, foi possível perceber que os textos de Torquato Neto e Adélia Prado parodiam o de Drummond, alterando seu sentido básico, provocando um deslocamento em relação ao poema original.

É preciso, ainda, não esquecer a contribuição legada pelo bruxo argentino Jorge Luis Borges. Ele afirmou, como visto no início deste trabalho, que um texto posterior altera a leitura de outro mais antigo. Assim, através de Let’s Play That e Com Licença Poética, temos agora novas possibilidades e significados para o Poema de Sete Faces. Aliás, a importância deste possivelmente seria bem menor se ele não tivesse gerado tantos herdeiros.