terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Cenas do trânsito 1 - Vende-se um inalador moderno

Ando sempre de carro e o trânsito é foda. Na época do Chevette, passava calor e estresse. Agora que as coisas melhoraram um pouco - veja só, tenho um carro com ar-condicionado-, o tráfego é que enlouqueceu. Sei lá, a economia sofreu aquecimento, assim como o clima, ou então o êxodo está se fortalecendo. Acho que é isso, tem o êxodo do pobre - sem carro, pedestre, ciclista ou usuário de "buzão" - vindo das cidades pequenas do estado, fugindo da seca de políticas públicas, e o do rico, ou remediado - palavra antiga-, escapando da fria loucura cinzenta de cidades sulistas, caindo na recente loucura ensolarada de Fortaleza.

Bem, é no meio deste trânsito que eu mergulho todos os dias, de modo apressado, automático, e às vezes ensandecido. São inúmeras viagens por dia, graças aos múltiplos compromissos que temos de assumir e à grande distância entre minha casa e as partes mais "nobres" da cidade. A marcha é sempre rápida, acompanhada pelo sentimento constante de urgência e com reduzidas oportunidades de contemplação do cotidiano. Se a filosofia oriental prega que o mais importante é o caminho e não o destino, é porque seus criadores não conheciam o trânsito moderno. Atualmente, o essencial é sair do caminho.

Envolvido neste tipo de torpor, é muito rara a oportunidade de prestar atenção em coisas belas e singelas, de perceber a riqueza dos momentos simples. Movendo-nos como máquinas operando outras máquinas, perdemos importantes pedaços de vida que poderíamos aproveitar e compartilhar. Devo, contudo, confessar que desenvolvo todo este raciocínio para comentar uma exceção ao entorpecimento causado pela urgência.

Trata-se de uma cena que guardarei para sempre na lembrança, e que representa um de meus primeiros contatos com a morte: a imagem de uma ambulância estacionada em frente à casa de um amigo de infância, morador da mesma rua. Eu contava na época com uns oito anos e aquela imagem chamou minha atenção. O enorme carro branco parado dava uma aparência triste a um lugar que me reservava, normalmente, muitas alegrias, pois lá eu costumava correr e brincar. Ao mesmo tempo, fiquei curioso por saber a razão da presença daquelas pessoas em minha rua. Perguntei aos vizinhos próximos e fui informado que a mãe do garoto havia tido um problema no coração e que os médicos foram chamados. Em seguida, disseram-me que não tinha sido possível fazer nada e que ela morrera.

A notícia da morte da mãe deste meu amigo deixou-me muito triste, pois me fez lembrar de que qualquer outra mãe poderia ter - e, claro, algum dia teria - o mesmo destino. Recordo-me que fiquei um bom tempo preocupado com a saúde da minha, temeroso que o mesmo ocorresse com ela. Deste modo, o fato é que a lembrança da ambulância parada em frente à casa de meu amigo gravou-se fortemente em minha memória e, sempre que vejo situação semelhante, minha atenção é logo despertada.

Assim, mesmo entorpecido pela atividade de guiar, percebi, voltando do trabalho, que havia uma ambulância na frente de uma casa localizada num ponto qualquer do meu trajeto rotineiro. Fiquei tolamente consternado com a possibilidade de que alguém houvesse morrido e lembrei-me da mãe de meu amigo de infância. Apesar da curiosidade, o automatismo comandou minhas ações e não pude perceber mais detalhes da cena. Contudo, daquele dia em diante, passei a observar instintivamente o lugar em minhas viagens de retorno a casa.

No dia seguinte, pude entrever pela janela uma pessoa idosa deitada numa cama, destas que se usa em hospitais, protegida nas laterais para evitar possíveis quedas. Meu entorpecimento foi vencido por alguns segundos e consegui observar o corpo da senhora conectado a alguns tubos de plástico que conduziam ao reservatório de soro. Ela estava com uma máscara no rosto, talvez fosse um inalador, e eu fiquei feliz, pois, ao contrário da mãe do meu vizinho, ela sobrevivera.

Nos tempos que se seguiram, pude acompanhar a recuperação da velhinha. Primeiro, a ausência dos incômodos tubos. Em seguida, foi-me possível notar seu corpo sentado na cama. Ela notoriamente ganhava forças. Algumas semanas depois, já estava sentada numa cadeira de rodas, na calçada. Por algum motivo, achei a cena maravilhosa. Para mim, aquela velha senhora era linda.

O estágio da cadeira de rodas foi bastante longo, mas, num certo dia, vi-a dando difíceis passos dentro de casa. Fiquei emocionado. Sua recuperação estava indo de vento-em-popa. Por alguma razão, talvez devido à sua melhora, comecei a esquecer de observá-la diariamente. Dali por diante, passei muitas vezes de modo automático pela casa sem prestar atenção em sua moradora. Somente de vez em quando, mais por acidente - ou talvez pelo velho costume -, vislumbrava a velhinha caminhando pelos cômodos. Era rara a ocasião em que eu olhava para dentro e não conseguia vê-la.

Assim, praticamente esquecido de sua existência e cercado pelas atribulações mecanizadoras do cotidiano, passei muito tempo sem sequer lembrar-me de virar o rosto para ver como ela estava. Passaram-se semanas, talvez meses, sem que sua imagem voltasse à minha mente. Contudo, numa determinada noite tive um sonho no qual eu voltava a ter oito anos de idade e brincava alegremente no quintal de casa. Convidei, por cima do muro, um vizinho para jogar bola na rua e, quando saía na calçada para divertir-me, vi uma ambulância estacionada umas cinco casas além. Acordei sobressaltado, mas voltei a dormir sem dar maior importância ao sonho ruim.

No outro dia, ao voltar do trabalho, possivelmente compelido de modo inconsciente pelo sonho da noite anterior, parei brevemente para observar a velhinha em sua casa. Contudo, ao invés de sua presença, encontrei um cartaz escrito numa caligrafia ruim, pregado sobre a nova pintura da fachada, dizendo:

Vende-se
Inalador moderno
Colchão de água
Cadeira de rodas

Depois desse dia, nunca mais a vi.