terça-feira, 28 de abril de 2009

Two Songs

Start me up

If you start me up
If you start me up I'll never stop

You make a grown man cry
Spread out the oil, the gasoline

(Jagger/Richards)


Break on through

You know the day destroys the night
Night divides the day
Tried to run
Tried to hide
Break on through to the other side
Break on through to the other side

(The Doors)

sábado, 18 de abril de 2009

GERAÇÃO BEAT E MÚSICA


1. Introdução

A ligação entre a chamada geração beat da literatura norte-americana e a música é muito forte. Lendo aquele que é considerado o mais emblemático de seus livros, On the road, de Jack Kerouac, é possível perceber a importância da música na composição da história e também na vida das personagens. Dean Moriarty e Sal Paradise, os protagonistas da obra, atravessam os Estados Unidos de fins da década de 1940 e início da de 1950 bebendo, usando drogas e freqüentando bares fervilhantes, repletos de alucinados músicos de jazz e com uma platéia sedenta de vida.

A trilha sonora que acompanha as personagens de On the road é, essencialmente, o jazz, principalmente o bebop – ou simplesmente bop –, cujos principais expoentes são Charlie Parker, Dizzie Gillespie e Thelonius Monk. Além desse estilo musical, também são mencionados o blues e alguns ritmos latinos, como o mambo. Deve-se ressaltar que o rock-and-roll é posterior à geração beat, tendo seu início bastante influenciado por alguns de seus escritores. Figuras importantes da cena musical dos anos 60 do século XX, como Bob Dylan e as bandas The Doors, Grateful Dead, Beatles e Pink Floyd tiveram, pelo menos no início, forte influência de Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs, dentre outros.

2. Influência do jazz

Em meados da década de 1930, o gênero predominante era o swing e um dos seus centros, Kansas City – cidade caracterizada por um estilo mais leve e descontraído que o de Nova York. Entre os músicos importantes desse cenário pode-se mencionar Count Basie e Lester Young. É tão forte a presença desses artistas para Kerouac que alguns personagens de On the road vão a um show de Young. O ano de 1945 pode ser considerado como o de início do bebop, o qual se tornou o ritmo musical mais inovador e influente do final dos anos 40 e do início da década seguinte. Ao contrário do swing, caracterizado por seu estilo dançante, o bebop chocava “com seus improvisos frenéticos e angulosos os fãs mais tradicionais” (Calado, pg. 23). Esses improvisos frenéticos, executados por músicos como Charlie Parker e Dizzie Gillespie, influenciaram fortemente escritores da geração beat, como Kerouac. Como menciona, de modo feliz, Eduardo Bueno – acerca do estilo do escritor franco-canadense – em sua introdução à edição de On the road da editora L&PM

Seu plano era deixar a própria personagem expressar-se livremente, entregando-se à descrição detalhista da paisagem suburbana (e underground) americana, numa versão tardia (mas pré-pop) da escrita automática dos surrealistas, um stream of conciousness (ou fluxo de consciência) mais facilmente compreensível por quem desfrutou de alucinógenos como maconha, mescalina e peiote (Kerouac, pg. 16).

Assim, esses solos executados pelos mestres do bop podem ser colocados em paralelo com a chamada “prosa espontânea” que Kerouac tentou desenvolver. Eduardo Bueno classifica o estilo beat como “laudatório, verborrágico, impressionista, vertiginoso, incontido, ‘espontâneo’, repleto de sonoridade, de gíria, de coloquialismo e de aliterações”. Ainda segundo Bueno, Kerouac “tentava fazer com que suas frases soassem como um solo de sax de Charlie Parker”, ao som do qual teria escrito On the road vertiginosamente, em um rolo contínuo de papel com 40 metros de comprimento, estimulado por grandes doses de benzedrina. Outro aspecto que aproxima escritores beat e alguns expoentes do bebop, como Parker, era o uso intensivo de drogas.

Não é apenas a semelhança entre o bebop e a prosa utilizada em On the road que denota a influencia do jazz no livro. Outro aspecto importante é o próprio ambiente que envolve as personagens, bem como suas aspirações e modo de vida. Dean e Sal vêm e vão pelas estradas norte-americanas em busca de emoção, de sentido existencial. Um dos mais importantes elementos nessa busca, além das mulheres e de estimulantes, é a música. O jazz os guia, aparece nos carros, nos bares que freqüentam, nas jukieboxes que surgem pelo caminho. O ritmo é um componente formador da obra literária, não apenas um acessório. O meio cultural influenciador do bop é o mesmo que criou seres como os protagonistas do livro. O comportamento e os anseios dos músicos são muito parecidos com o das personagens, criadas à semelhança de pessoas reais, como o próprio Kerouac (Salvatore Paradise) e seu amigo Neal Cassady (Dean Moriarty). O estilo frenético, não planejado, do bebop lembra bastante a inquietação juvenil e a sede de vida existente em Sal, Dean e seus amigos. Uma América diferente daquela preconizada pela cultura dominante do pós-guerra – pacata, feliz e ansiosa por brinquedos tecnológicos, como carros e eletrodomésticos – caracterizava tanto a cena jazzística quanto o modo de vida das personagens de On the road. A maioria dos grandes músicos de jazz é negra, de origem modesta, e a juventude descrita no livro se rebela contra o vazio gerado pelo american way of life, criado por uma elite branca. Eles buscam viver intensamente, preconizando a liberação sexual, fazendo uso intensivo de “estimulantes” – como maconha, benzedrina, morfina e álcool – e evitando vínculos profissionais e sentimentais duradouros.

Vale ainda ressaltar a aula de história do Jazz apresentada por Kerouac, com seu estilo solto e verborrágico, nas páginas de On the road

Outrora fora Louis Armstrong, mandando ver nos lamaçais de Nova Orleans; antes dele, os músicos loucos que entravam nas paradas, aos feriados, e desfaziam as marchas marciais transformando-as em ragtime. Surgiu então o swing e Roy Eldridge, vigoroso e viril, quase rebentando seu trompete ao arrancar dele sonoras ondas de poder, lógica e sutileza – inclinado, com os olhos radiantes e um sorriso encantador –, irradiando-as, para fazer gingar todo mundo do jazz. Chega então a vez de Charlie Parker entrar em cena, ele era apenas um garoto no casebre de madeira de sua mãe em Kansas City soprando seu sax-alto todo remendado, entre as tábuas, praticando nos dias de chuva, fugindo vez ou outra para assistir à banda do velho Basie e de Benny Moten, [...] e então Charlie Parker saiu de casa e foi para o Harlem encontrar o louco Thelonius Monk e Gillespie, mais louco ainda... (Kerouac, pg. 293, 294).

3. Influenciando as décadas seguintes

Se os escritores da geração beat estão fortemente ligados ao jazz, também é possível afirmar que eles influenciaram os movimentos musicais posteriores, principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra. Bandas como Pink Floyd surgiram de clubes como o UFO, em Londres, visitado por Ginsberg. Um álbum falado em homenagem a Kerouac, chamado Kicks Joy Darkness, contou com a performance de artistas como Steve Tyler, do Aerosmith, Michael Stipe, do REM, e Joe Strummer, do Clash. A banda King Crimson gravou uma disco chamado Beat com músicas como Neal and Jack and me e Satori in Tangier. Lendas do rock, como Bob Dylan e Jim Morrison afirmaram ter sido muito influenciados pela leitura de On the road. Enfim, são inúmeros os legados deixados pela geração beat para os músicos dos anos 1960 e 70, principalmente.

A relação entre os escritores beat e músicos pode ser estendida ainda mais. Num rápido acesso à Internet é possível ver relações entre Ginsberg, Bob Dylan e Beatles. Michael McClure foi amigo de membros do The Doors. Cassady foi membro da banda Ken Kesey’s Merry Pranksters, um grupo que incluiu membros do Grateful Dead. Aliás, é famosíssima sua participação no ônibus mais louco da história, em que Cassady e integrantes dessas bandas percorreram os Estados Unidos realizando performances musicais e distribuindo LSD. Entre os amigos de Burroughs estão Mick Jagger, dos Stones, e Lou Reed, do Velvet Underground. Ginsberg trabalhou com o Clash, Burroughs com Sonic Youth, REM, Kurt Cobain e Ministry. Bono Vox do U2 cita Burroughs como uma grande influência. Como se pode perceber, as ligações são inúmeras, o que demonstra a força da geração Beat na música da segunda metade do século XX.

Eduardo Bueno corrobora as ligações entre os beats e o rock encontradas na grande rede

A questão é que tal geração se multiplicou em muitas. Bob Dylan fugiu de casa depois de ler On the road. Chrissie Hynde, dos Pretenders, e Hector Babenco, de Pixote, também. Jim Morrison fundou The Doors. No alvorecer dos anos 90, o livro levou o jovem Beck a tornar-se cantor, fundindo rap e poesia beat. Jakob Dylan, filho de Bob, deixou-se fotografar ao lado da tumba de Kerouac em Lowell, Massachussets, como o próprio pai fizera, vinte anos antes [...].

Na verdade, se a explosão hippie dos anos 1960 for interpretada como uma conseqüência indireta de On the road – o que não constitui um exagero –, nenhum livro deste século terá deflagrado uma revolução comportamental maior do que a obra de Kerouac (Kerouac, pg. 293, 294).

A fim de acentuar a importância cultural dos escritores beat, é válido lembrar das incursões de Ginsberg em eventos, festivais e outras apresentações, lendo seus poemas e demonstrando, ao lado de Timothy Leary, os benefícios do LSD. Pode-se citar, ainda, as viagens do escritor para a Inglaterra e o trabalho com bandas como o Clash, um ícone do movimento Punk.

4. Conclusão

Como foi possível perceber, a ligação entre os escritores da geração beat e a música – tanto a que veio antes, quanto a posterior a seus trabalhos – é visceral. Poesia e prosa inspiradas pelo jazz, uma sociedade baseada nas idéias do mundo do jazz, eram características comuns de vários autores desse grupo. A rebeldia e o desejo de viver longe da monotonia da sociedade americana do pós-guerra são emblemas desses artistas que inspiraram várias gerações de músicos nas décadas seguintes. O rock e o pop pagaram grandes tributos a esses autores, tão importantes para formar o ideário jovem da revolução comportamental da segunda metade do século XX.

5. Bibliografia

KEROUAC, Jack. On the road (Pé na estrada). Porto Alegre: L&PM, 2004.

CALADO, Carlos. Charlie Parker. Rio de Janeiro: MEDIAFashion, 2007.

WIKIPEDIA. http://en.wikipedia.org/wiki/Beat_Generation.

LITERARY KICKS. http://www.litkicks.com/Jazz/.

MUNDOCLASICO. http://www.mundoclasico.com/2009/documentos/doc-ver.aspx?id=ec40f7d5-2ae5-477d-bcc1-bf3be02c5402.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Leitura Obrigatória


"Acho a frase 'leitura obrigatória' um contra-senso. A leitura não deve ser obrigatória. Devemos falar de prazer obrigatório? Por quê? O prazer não é obrigatório, o prazer á algo buscado. Felicidade obrigatória! A felicidade, nós também buscamos. Fui professor de literatura inglesa por vinte anos na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e sempre aconselhei a meus alunos: se um livro os aborrece, larguem-no; não o leiam porque é famoso, não leiam um livro porque é moderno, não leiam um livro porque é antigo. Se um livro for maçante para vocês, larguem-no; mesmo que esse livro seja o Paraíso perdido - para mim não é maçante - ou o Quixote - que para mim também não é maçante. Mas, se há um livro maçante para vocês, não o leiam: esse livro não foi escrito para vocês. A leitura deve ser uma das formas de felicidade, de modo que eu aconselharia a esses possíveis leitores do meu testamento - que não penso escrever -, eu lhes aconselharia que lessem muito, que não se deixassem assustar pela reputação dos autores, que continuassem buscando uma felicidade pessoal, um gozo pessoal. É o único modo de ler."

Jorge Luis Borges
Tirado de Borges para millones, entrevista feita na Biblioteca Nacional [Argentina] em 1979.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

O INVASOR



ALTERAÇÕES NARRATIVAS OCASIONADAS PELA ADAPTAÇÃO DO ROMANCE O INVASOR PARA O CINEMA


1. INTRODUÇÃO

O romance O Invasor, de Marçal Aquino, foi adaptado para o cinema por Beto Brant. O livro é narrado em primeira pessoa pela personagem Ivan, cúmplice no assassinato de um dos sócios de sua empresa. Como toda a narrativa transcorre sob o olhar de Ivan, as cenas limitam-se àquelas em que ele toma parte. Dizendo de outro modo, tudo que acontece está ou esteve sob seu olhar. Os eventos enunciados são de seu conhecimento, já que ele é o próprio responsável por contar a história. No filme de Beto Brant, contudo, pode-se dizer que Ivan seja o personagem principal, mas não o narrador. O foco narrativo é alterado durante a passagem de um meio de expressão para outro. A montagem, através do diretor e do olhar de sua câmera, é responsável por contar a história. Desse modo, no filme existe a possibilidade de inserção de cenas das quais Ivan não tem ciência.

O objetivo deste estudo é analisar quais alterações derivadas da mudança de foco narrativo, ocasionada pela tradução intersemiótica do romance O Invasor, foram implementadas pelo diretor e o que essas alterações geraram em termos de economia ou gasto de recursos. Será que algumas passagens foram alteradas, negligenciadas ou acrescidas durante a transposição do meio escrito para o fílmico?

A comparação aqui realizada entre o romance e sua adaptação fílmica não leva em conta o roteiro existente na segunda parte do livro. O texto foi divido em cenas devido a seu caráter visual. A divisão foi feita segundo um critério espacial, ou seja, quando existe mudança de ambiente pressupõe-se a ocorrência de uma nova cena. Essas cenas nem sempre coincidem com a divisão adotada pelo diretor, sendo esta divisão um dos pontos em estudo.


2. COMPARATIVO CENA A CENA

O primeiro capítulo do livro descreve em detalhes o acerto entre Ivan, Gilberto (Alaor) e Anísio. O encontro ocorre à noite, num botequim. A descrição dos eventos é minuciosa, fazendo menção a detalhes tais como a dificuldade em localizar o bar, o tipo de pavimentação, os outros clientes e a bebida dos recém-chegados. Anísio é descrito pormenorizadamente e caracterizado como nordestino. Ivan tem a iniciativa dos diálogos, que são relativamente longos. O filme é bem mais sintético na condução desta cena, que ocorre, ao que tudo indica, no final da tarde. Ivan e Gilberto são vistos de dentro do botequim. Os dois mostram-se um tanto quanto deslocados na periferia pobre. Gilberto toma a iniciativa de falar com Anísio que, ao contrário do que ocorre no livro, não parece receptivo logo de pronto. Toda a cena ocorre sob o ponto de vista de Anísio, que está sentado à mesa do bar e bebe uma cerveja. Os outros dois não tomam nada. O rosto do matador não é mostrado em nenhum momento, mas percebe-se que não possui sotaque nordestino. A câmera representando o ponto de vista de uma das personagens simplifica a execução da cena, pois, concentrando seu foco no olhar de Anísio, torna-o o eixo principal da seqüência, desviando a atenção de outros detalhes, tais como o ambiente, que foi bastante pormenorizado no livro. Outro detalhe importante, é que Ivan nada fala, o que por si só já é um modo de reduzir a quantidade de diálogos.

A segunda cena do livro ocorre logo após o encontro no bar. Ivan e Gilberto estão conversando no carro do primeiro, que está preocupado, enquanto Gilberto mostra-se relaxado. Surge uma velha tentando vender chocolates, que é ignorada por ambos. É interessante notar que a mulher parece lançar uma maldição sobre eles, o que pode ser interpretado como um sinal de que as coisas não ocorrerão de acordo com o plano dos dois. O filme retrata a seqüência com fidelidade, sendo que a câmera encontra-se posicionada no banco de trás do veículo, o que dá um forte caráter de proximidade à cena. A velha, contudo, não é mostrada, o que aniquila o presságio existente no livro. Sua ausência reduz o tempo total da seqüência, dando mais agilidade à mesma.

No livro, quando Ivan e Giba descem do carro, estão numa rua deserta, com sobrados geminados. Numa dessas casas, aparece uma mulher com a qual Giba conversa. Eles entram no sobrado e há muitas garotas, talvez menores de idade. Giba sai com duas delas, mas antes fala para Alessandra (Mirna) ficar com Ivan. No quarto, ele a vê urinar. Ela lhe mostra sua tatuagem, o que o faz lembrar seu pai, que possuía um misterioso desenho no ombro esquerdo. A cena de sexo oral é descrita com detalhes, bem como o diálogo entre os dois. No filme, o bordel é elegante, com manobrista e segurança na porta. A entrada de ambos na casa é mais detalhada que no livro. Eles pegam duas chaves de quarto. O bordel parece mais uma boate por dentro, com muitas luzes e repleto de gente. Giba fica uma garota e chama outra para Ivan, a Alessandra. Ela aparece mais sensual do que o descrito no livro. A cena de sexo oral é apenas sugerida – o que reduz bastante o tamanho da cena, caso o livro fosse seguido à risca – e a seqüência toda é muito breve. Não há diálogo entre os dois, ela não aparece urinando e não há nada sobre o pai dele.

Ivan acorda no bordel, no quarto com Alessandra. Ele se lembra de um sonho e, ao sair, Alaor/Giba o espera, conversando com a mulher e as garotas. Ivan se propõe a pagar pelo programa, mas a mulher não aceita. No filme, essa seqüência simplesmente não existe.

É final de madrugada durante a quinta cena do livro. Ivan deixa Giba numa estação do metrô, pois já está amanhecendo. Ele descobre que o sócio é dono do puteiro, juntamente com o Norberto, e Giba diz que não há mais volta para o que decidiram fazer. A cena do filme é muito parecida, mas há um flashforward de Ivan chegando em casa, logo no início da seqüência. Ivan deixa Giba em casa. O diretor parece ter querido exibir a felicidade de Giba ao ver que o assassinato estava encaminhado. Ainda está escuro quando o portão do prédio é aberto.

Na sexta cena do livro, Ivan chega em casa, toma banho, observa sua esposa Cecília dormir e reflete amargamente sobre seu casamento acabado. Ele se veste e sai do quarto. No filme, Ivan chega a casa, tira a revista que está com Cecília, cobre-a com o lençol e apaga a luz. Senta-se numa cadeira e põe a cabeça entre as mãos, demonstrando preocupação. Existe aí uma divergência. Possivelmente o diretor optou por mostrar Ivan sentado, tenso, para tentar fazer o leitor captar seus pensamentos, que não podem ser expressos em palavras, como no livro.

Na cena sete, Ivan e Estevão têm uma conversa sobre a situação da empresa. Enquanto eles dialogam, Ivan imagina vários modos distintos que poderiam ser utilizados por Anísio para matar o seu sócio. Estevão diz para Ivan que a idéia do contrato com o governo veio de Gilberto e Ivan confirma, apesar de não ser verdade. O sócio majoritário diz que vai comprar a parte de Giba, que está envolvido com prostituição, e propõe a Ivan sua permanência na construtora. Os diálogos são longos e os pensamentos de Ivan transparecem durante a narrativa. O diretor buscou passar ao espectador toda essa carga dramática através de planos muito próximos, filmados sobre o ombro de cada um dos interlocutores, onde a expressão de cada ator, principalmente a de Marco Ricca, tenta mostrar os complexos sentimentos descritos no livro. Apesar de bem sucedido em parte, esse estratagema falha por não conseguir expressar em sua totalidade a mente de Ivan, que demonstra frieza e insinceridade maiores no livro que no filme. A adaptação cinematográfica reduziu a quantidade de cenários imaginados por Ivan sobre a forma como Estevão seria morto por Anísio, o que reduz o tempo total da seqüência.

Na oitava cena, Ivan aparece como um engenheiro de escritório, desajeitado ao caminhar por um canteiro de obras. Esse aspecto não é mostrado no filme, bem como a existência de um outro funcionário, um rapaz, que está se lavando no início da cena. Em nenhum momento a divisão de tarefas entre os sócios da empresa é comentada no filme, mas fica claro que Ivan trabalha internamente na construtora, com cálculos e orçamentos, enquanto Giba é um homem de campo. No livro, a placa da empresa mostra primeiramente o nome de Alaor, depois o de Estevão e, por fim, o de Ivan, ou seja, em ordem alfabética. No filme, Giba relembra a briga para saber quem ficaria com o nome por último, sendo que prevaleceu o poder de Estevão, seguido de Gilberto.

A relação entre Gilberto e Ivan no filme é bastante interessante, sendo que o primeiro está sempre cercando Ivan, tocando nele, falando com grande proximidade, como que para intimidá-lo, dominá-lo. Ivan surge com alguém fraco, manipulado por Giba. Aliás, o tipo de serviço de Alaor/Gilberto demonstra como ele é forte, pois tem que controlar peões de obra, gente por vezes indisciplinada e que gosta de testar a força de quem os comanda. Giba diz que Ivan não teria estômago para isso, do mesmo modo que não teve para outras coisas. No livro, o autor descreve uma mulata que passa empurrando um carrinho de bebê. Dá também detalhes acerca do biotipo da criança. No filme, a passagem da mulata é mais breve, apesar da troca de olhares entre ela e Giba continuar a existir, e a criança não é vista. O encarregado dando em cima da mulata também não faz parte da adaptação fílmica. Outro ponto importante é que no filme nenhum dos dois comenta ter recebido uma proposta do Estevão para permanecer na companhia. Outro detalhe que merece destaque por não aparecer no filme é que não existe nenhuma referência ao fato de Rangel ter tido um caso com Silvana, a mulher de Estevão, na época da faculdade. A ausência desses detalhes reduz o tamanho das seqüências e dá agilidade à adaptação fílmica.

O capítulo 5, correspondente à cena 9, do livro inicia-se com a descoberta dos corpos de Estevão e Silvana, dentro do porta-malas do carro. Depois há um flashback em que o doutor Araújo, pai de Estevão, presta queixa à polícia sobre o desaparecimento do filho. Ele pensa tratar-se de um seqüestro. Ivan está nervoso e vai encontra-se com Giba num restaurante, onde comentam o desenrolar dos acontecimentos. No filme, há uma seqüência intermediária em que aparecem os três sócios na noite anterior ao crime. Giba está contando a história dos três porquinhos à sua filha, Estevão joga bola com os amigos e avisa que vai jantar com a mulher, enquanto Ivan está no bar que costuma freqüentar, com aparência atormentada. Essa agilidade propiciada pela montagem em paralelo permite que possamos comparar as atitudes, num dado instante, de pessoas que estão em locais diferentes. Na manhã seguinte, Ivan chega ao escritório e nota a ausência de Estevão. Liga para Giba e este recomenda que ele continue trabalhando normalmente. A secretária, Lúcia/Márcia, informa a Ivan que o doutor Araújo foi à polícia e pede sua presença. Na delegacia, ele encontra o pai de Estevão e sua filha, Marina. A seguir, Ivan vai almoçar com Giba. Novamente o diretor posiciona a câmera sobre o ombro de um dos interlocutores, no caso, o de Giba. Com isso, é possível observar atentamente as reações de Ivan, que demonstra temor e impaciência. Em seguida, Ivan está em casa, sua mulher chega e lembra-lhe de uma festa. Ele diz que não irá, pois está preocupado com o sumiço de Estevão. Seu casamento está praticamente falido. Em contraste, Giba aparece transando com a esposa quando sua filhinha entra no quarto com medo de um pesadelo. Ele parece um pai exemplar. Cecília, a esposa de Ivan, retorna da festa, vai ao banheiro, retira a maquiagem e chora. Ela vai se deitar. Ivan está na cama, de costas para a entrada do quarto e de frente para a câmera, fingindo dormir. Na madrugada, Ivan liga para Giba informando que os corpos foram encontrados. A trilha sonora da cena em que os cadáveres são encontrados é composta por uma música muito violenta, um rock pesado. Os corpos não aparecem. Quando eles chegam, o rabecão já está conduzindo os cadáveres. Ivan demonstra perplexidade, ficando estático. Giba finge grande sofrimento. No velório, Giba continua o seu disfarce. Como se pode observar, essa seqüência aparece muito mais detalhada no filme. O livro descreve tudo em poucas páginas, enquanto o diretor gasta um bom tempo criando o clima do duplo homicídio, exibindo o comportamento dos três amigos antes e depois de constatado o crime.

No início da décima cena, Ivan descreve a cara-de-pau de Giba durante todo o transcorrer da descoberta dos corpos e do velório. O delegado Junqueira vai à construtora falar com os sócios de Estevão. Eles fingem não ter nada a ver com o ocorrido. Parece não haver nenhuma suspeita sobre eles. Essa seqüência é omitida no filme. Aliás, esse delegado não aparece em nenhum momento.

A cena seguinte, de número 11, apresenta Ivan em seu bar predileto. Ele se recorda de quando Giba propôs a morte de Estevão. Ivan conhece Paula, leva-a a um motel. No filme, o encontro entre os dois ainda não ocorreu. O diretor insere primeiramente a aparição de Anísio.

Na cena 12, Ivan deixa Paula em frente a um prédio e vai para a construtora. Durante o expediente, Anísio aparece na empresa. Ele traz consigo pertences do casal. Ivan e Giba entram em pânico, dizem que darão o dinheiro no dia seguinte em outro lugar. Anísio disse que passará na construtora para receber. Começam a surgir os primeiros indícios da invasão. No filme, a seqüência se inicia com a câmera em movimento indo em direção à construtora, passando por vários compartimentos e terminando na sala de Ivan. O olhar da câmera é o do personagem Anísio invadindo o lugar. Ele veio receber o dinheiro na empresa, o que deixa os dois perturbados. Eles pagam o assassino e este sai. Essa cena é parecida com o conteúdo do livro, a não ser pelo olhar da câmera, ou de Anísio, entrando no universo dos dois sócios. O filme mostra, a seguir, Giba e Norberto no bordel. Giba demonstra preocupação com a fraqueza do sócio. Essa seqüência não é narrada no livro. Enquanto isso, Ivan está no bar de costume. Lá, ele conhece Paula. Todo o diálogo que o autor criou entre ambos é sintetizado pela divisão do fogo do cigarro (o isqueiro de Ivan não funcionou) e pela história das cores das bebidas.

A cena 13 do livro mostra Ivan e Paula passando um final-de-semana numa casa de praia. Essa cena aparece mais tarde no filme.

No capítulo iniciado com Ivan e Paula no litoral existe um flashback da segunda aparição de Anísio na construtora, o que seria a cena 14. Ele veio receber seu dinheiro. No filme, deve-se lembrar que o pagamento ocorreu na primeira visita do bandido. Voltando ao livro, Anísio começa a intrometer-se na vida dos dois: pede que guardem o dinheiro, sugere que talvez precisem dele, quem sabe como segurança. Essa sugestão ocorre posteriormente no filme. Giba aceita a proposta de Anísio permanecer como segurança. Retornando ao filme, Giba chega à empresa e encontra Anísio na ante-sala de Ivan, conversando com a secretária. Na conversa entre os três, Anísio sugere ajudá-los com a segurança. Nada fica acertado.

Na cena 15 do livro, Anísio faz a terceira visita e é nesse momento que ele conversa com a secretária (Márcia/Lúcia). Anísio, na verdade, já está trabalhando na empresa. O flashback termina e Ivan está convidando Paula para passa o fim-de-semana na praia.

A cena 16 do livro apresenta Ivan no aeroporto, retornando de Brasília, onde encontrou-se com Rangel. Ele vê o delegado Junqueira e imagina estar sendo seguido. Não há menção a essa passagem no filme.

Na cena 17, Ivan fala de seus temores para Giba, que fica possesso. Ambos encontram-se com Marina e o Dr. Araújo na sala de reuniões. Ela não demonstra muito interesse pelos assuntos da empresa. É mencionado um envolvimento prévio da menina com drogas. Ivan vê Anísio e Marina conversando no estacionamento da construtora. Ela ria, ele encostava nela. No filme, Marina e o avô estão acompanhados de um advogado. Anísio passeia bisbilhotando pelas dependências da construtora. Parece muito à vontade, quase como se fosse um dos sócios. Ele chega a mandar um funcionário apagar correções feitas a lápis num projeto. Marina também sai para fumar um cigarro. Do lado de fora, ela encontra Anísio e fica fascinada pelo modo como ele controla um cachorro de aparência agressiva. A atitude dele é a chave de seu sucesso com ela. Ele a faz pegar no cachorro. O foco da narrativa direciona-se cada vez mais para o bandido, que passa a disputar o protagonismo com Ivan.

A cena 18 do livro exibe Ivan, Giba, Dr. Estevão e Marina almoçando num restaurante. Eles não almoçam juntos no filme.

Ivan fala para Giba, na cena 20, que deseja fazer uma varredura nos telefones em busca de escutas. Demonstra temor com relação ao futuro. Giba tenta acalmá-lo, sem sucesso. Não existe essa passagem no filme. Por outro lado, o filme mostra algo inexistente no livro: Ivan indo falar com Giba em uma obra, cobrando satisfações do sócio por uma negociação feita com o Rangel sem o seu conhecimento. Aqui, como no livro, Giba menciona que as investigações foram encerradas. Ele comenta que Ivan tem estado muito ausente da construtora. Ivan, no andar mais alto do prédio, parece estar no topo do mundo, mas encontra-se, na verdade, no fundo de um abismo. Logo a seguir, ele aparece fazendo sexo ferozmente com Paula. Ele diz que vai deixá-la em casa, apesar dela querer ficar no metrô. Essa carona possivelmente corresponde àquela mencionada na cena 12 do livro.

Na cena 20, Ivan chega para trabalhar cedo pela manhã e vê Anísio sendo trazido à construtora por Marina, ambos de cabelo molhado. Trocam beijos. A seqüência do romance entre Marina e Anísio é a mais longa do filme, sendo aqui mencionada em apenas dois parágrafos. Anísio vai à casa de Marina com um cachorro debaixo do braço para presenteá-la. Eles conversam muito, fumam maconha. Anísio fala coisas sem nexo. Após algum tempo, decidem sair. Pegam o carro de Marina e percorrem a periferia pobre da cidade. Vão a um salão de beleza no qual Anísio tenta, em vão, fazer Marina ser atendida. Vão parar num botequim “boca de porco”, freqüentado normalmente pelo bandido. Há um rapaz vestindo um agasalho com os dizeres “Terror na periferia”. Anísio pede uma maria-mole para Marina. Ela mistura a bebida com cerveja. Ele demonstra familiaridade com o ambiente e domínio da situação. Sua atitude cativa a garota. Anísio compra cocaína, eles voltam para o carro, chegam a um local alto e ermo, cheiram o pó e transam, sem camisinha. A cena seguinte mostra Ivan e Paula no litoral, como mostrado na seqüência 13 do livro. É interessante notar que o autor se refere ao bico dos seios de Paula aparecendo por baixo da roupa e o mesmo é mostrado no filme (com a Malu Mader). Chegando para trabalhar, Ivan flagra Anísio e Marina no carro, aos beijos.

Na cena 21, Ivan visita sua mãe, velha e deprimida. Ele pergunta porque seu pai se matou e a mãe, a princípio, não responde. Quando Ivan está indo embora, ela fala que seu pai era um fraco. Ivan sabe que também é. Essa cena não aparece no filme, do mesmo modo que diversas passagens com Ivan. Ele vai sendo meio que deixado de lado, enquanto Anísio ganha espaço.

O escritor usa um flashback para apresentar a cena 22, em que Anísio traz um amigo seu para pedir dinheiro emprestado aos sócios. No livro, é um mulato barrigudo que deseja abrir um bar na periferia. No filme, Anísio traz o rapper Sabotage, que precisa de uma ajuda para gravar um CD. O diretor aproveita a deixa para colocar perto do espectador um ator representando ele mesmo. Por ser um cantor pertencente à cena musical da periferia, Sabotage enquadra-se bem no papel, dando bastante veracidade à história, inclusive fazendo lembrar que Anísio também é interpretado por um músico, Paulo Miklos. É interessante notar o comportamento extremamente educado do cantor, beijando a mão da recepcionista. Durante a apresentação da música, a expressão nos rostos de Marco Ricca e, principalmente, Alexandre Borges é impagável, demonstrando toda a inadequação do que está ocorrendo. Sabotage fala: “O cara tá desgostoso da vida e não curte um rap”. É interessante observar o olhar de vitória e desafio que Anísio lança sobre Ivan enquanto Giba preenche o cheque. O rapper parece realmente constrangido. Anísio fala que a sociedade está estabelecida entre eles. Giba parece em choque.

Durante a cena 23, Ivan e Paula estão num motel. Ele a convida para fugir, ir para o nordeste. Essa conversa ocorre posteriormente no filme.

Na cena 24, Ivan encontra Giba num restaurante e avisa que deseja sair da construtora. Giba diz que Ivan não pode sair.

Ivan chega em casa, na cena 25, e percebe que Cecília não está mais. Liga para ela e confirma que havia ido embora, para a casa da mãe.

A cena 26 mostra Ivan lendo um jornal e descobrindo que o agiota para quem eles deviam dinheiro havia morrido. Ele imediatamente desconfia de Giba e Anísio. Ivan procura o sócio em sua sala e eles brigam. No filme, Ivan procura Giba em sua academia, o que o exaspera bastante. Eles também se desentendem.

Na cena 27, Ivan vai à casa do segurança do bar que freqüenta – um homem negro que mora num cortiço – para comprar uma arma. No filme, eles vão a um karaokê, freqüentado especialmente por orientais. O sujeito que está cantando, provavelmente descendente de japoneses, repete o seguinte refrão: “Não tenho rosto / Nada do que você possa se lembrar depois”. É curioso notar que o homem parece apontar na direção de Ivan, como se quisesse dizer algo. Pode-se dizer que o diretor deseja passar para seu personagem um tipo de remorso como o sofrido por Raskólnikov, de Crime e Castigo. Ivan consegue a arma com um funcionário do bar. Ele aparece num quarto de motel, deita-se na cama com a arma e tem uma crise de pânico. Ivan está totalmente fora de controle. Paula está se vestindo na seqüência seguinte. Enquanto Ivan toma banho, ela descobre a arma e fica bastante alarmada. Nesse momento ele propõe a fuga, indo para o nordeste, tal como aparece na cena 23 do livro. Paula está extremamente desconfortável com a situação e tenta descobrir o que Ivan planeja.

Em flashback, Anísio convoca Ivan para um churrasco na cena 28. Ele o intimida. Ivan decide, neste momento, comprar o revólver. No filme, a próxima seqüência narrada pelo diretor apresenta Anísio numa obra tentando acabar com pequenos furtos realizados pelos peões. Ele briga com um deles, que tem a chave do almoxarifado. Giba chega e pergunta quanto Anísio quer para sumir e este responde que “tá gostando”, que não há conta bancária que o tire de lá. A seguir, aparece Ivan no escritório falsificando uma assinatura, supostamente a de Giba. Anísio entra e o convida para uma reunião com os peões, possivelmente um churrasco, incluindo futebol.

A seguir, é mostrada detalhadamente uma balada entre Anísio e Marina. Ela está em casa com o cabeleireiro. Ele toma banho, veste-se, e fala sozinho, gesticulando e fazendo cara de mau: “Atitude, mano!”; “Pau no seu cu, filho da puta!”; “Clack, clack, bum!”, lembrando a música “Mano na porta do bar”, dos Racionais; “Respeito é pra quem tem!”, de Sabotage, olhando diretamente para a câmera, sua comparsa.

Na cena 29 do livro Paula descobre a arma de Ivan, no motel. Ele reitera o convite de fuga. A seqüência respectiva no filme foi descrita duas cenas atrás.

Ivan está à espreita na entrada do edifício de Paula, na cena 30. Ele a espera para fugir. Essa cena acontece posteriormente no filme. Ivan interfona, não encontra ninguém com o nome de Cláudia. Esta aparece num bar, tentando falar ao celular com Giba.

Durante a cena 31 inicia-se um flashback. Ivan está na empresa, realizando um desfalque na construtora pela internet. Olha pela janela e vê Anísio encostado em seu carro. Na hora de partir, Anísio fala para ele levar Paula ao churrasco. Essa cena não ocorre no filme.

Na cena 32, Ivan está em casa, preparando-se para fugir. Ele ouve ruídos, acha que o estão seguindo. Cecília entra lá, assusta-se. Ivan vai embora. O flashback iniciado na cena 31 termina.

Durante a cena 33, Ivan aproveita-se da entrada de um casal de idosos no prédio e os acompanha. Ele encontra o apartamento, força a porta. Há fotos de Paula na parede. Ele vê a conta do celular e encontra o número de Giba, várias vezes. Encontrou fotos de Paula/Cláudia em poses sensuais, como num book. Percebe que ela fora contratada. Verificou as mensagens na secretária eletrônica. Havia uma de Giba. Este dá a entender que ele cuidaria de Ivan. Ele decide matar Giba e Anísio e sai alucinado pela cidade. No filme, Ivan aproveita a entrada de um grupo de amigos no prédio e os acompanha. Usa as escadas, não há elevador, como no livro. Arromba a porta. Reconhece as roupas dela pelo cheiro. Vê fotos. Ouve a secretária eletrônica, com o recado de Giba. Seu nome é Fernanda. Ele fica transtornado. Escreve um bilhete e o cola, juntamente com duas fotos, na tela da TV. O bilhete diz: “Eu te mato”. Na seqüência, aparece a continuação da balada de Marina e Anísio. Eles estão num bar. Um rapaz fala com Marina e ela o apresenta a Anísio. O rapaz faz pouco caso do bandido, que vai tomar satisfações, amedrontando o garoto. Novamente, demonstra atitude.

Na cena 34, Ivan dirige pela cidade, com os sentidos embotados. Busca o prédio de Giba, que não está. No filme, Ivan também dirige-se à portaria de Giba. Destrata o porteiro, liga pelo celular para a esposa de Giba e diz que o está procurando. Paula volta ao apartamento e percebe o que aconteceu. Marina e Anísio saem do bar. Ela lhe dá um comprimido, provavelmente de ecstasy, e toma outro. Dançam freneticamente numa boate. No início, Anísio não dança, desambientado. Marina começa um lance com outra garota. Anísio parece tomar seu comprimido neste momento e cai na festa.

No livro, na cena 35, Ivan sai à procura de Giba no puteiro. Ele está transtornado. Chuta uma porta com violência. É dominado por um segurança. Norberto sai pela porta. Ivan é jogado para fora da boate e percebe que seu pé está quebrado. No filme, Ivan também vai ao bordel. Causa confusão e é arrastado por dois seguranças. Paula encontra Giba na frente de seu prédio e o avisa da situação. Eles saem no carro.

Na cena 36, Ivan resolve voltar para o prédio de Giba. Bate numa caminhonete. Dois rapazes saem do carro. Ivan aponta o revólver para os dois, que vão embora. O carro de Ivan está danificado e ele sai a pé, mancando. Caminha um bom tempo e consegue um táxi. No filme, essa cena é intercalada com Anísio fazendo sexo com Marina e a garota da boate. A seguir, Anísio aparece com Giba na sala da casa de Estevão. Giba está apavorado. Anísio mostra sua atitude tranqüila, confiante. Giba fala para Anísio matar Ivan. Este diz que não faz mais este tipo de serviço. Agora, manda fazer. Anísio recomenda que Giba faça o serviço ele mesmo. Giba insinua que Ivan pode entregar tudo para Marina. Anísio não se intimida. Ivan bate o carro. Ele se desentende com os dois rapazes e aponta a arma para eles. Os dois vão embora. Ivan sai a pé, pela periferia, aturdido. A cena não é curta e a trilha sonora bastante contundente.

Ivan está na delegacia durante a cena 37. Conta tudo. O escrivão não toma notas. Chama um investigador e os dois decidem procurar o delegado. No filme, aparece um close de Ivan contando toda a história. Mostra todo o seu desequilíbrio emocional e também sua fraqueza. Suas falas são cortadas durante a edição, o que dá um efeito de confusão mental maior. Cita o nome do Norberto.

Na última cena, a 38, está amanhecendo. Ivan encontra-se numa viatura. Eles chegam em frente à casa de Estevão. O carro de Giba está lá. O delegado Norberto espera Anísio e Giba saírem. Ele aponta a viatura em que Ivan se encontra. Anísio apresenta um olhar de vitória sobre Ivan. Norberto manda que eles resolvam o problema e vai embora. Ivan pensa em Paula. “O investigador ligou o motor da viatura. Eu abri os olhos”. Termina o livro. No filme eles também chegam à casa de Estevão. Anísio sai de roupão, seguido por Giba. Este toma um “cagaço” de Norberto. Anísio olha para Ivan com um misto de desprezo, superioridade e violência. Giba passa toda a cena com cara de palerma. Norberto fala para darem um jeito em Ivan. Giba e Anísio se entreolham, sabendo o que terão de fazer. Marina rola na cama. O cachorro está próximo a ela, no chão. Termina o filme.


3. CONCLUSÃO

A mudança no foco narrativo, que passa de um narrador em primeira pessoa no livro para um em terceira no filme, ocasiona uma série de alterações no modo de contar a história. Aliadas a isso, existem as diferenças inerentes aos meios de expressão. No livro, há a possibilidade de uma maior exploração da condição psicológica das personagens, enquanto o filme proporciona uma grande agilidade, já que uma seqüência visual pode resumir páginas e páginas de texto escrito.

Uma das alterações que podem ser percebidas é o crescimento do personagem Anísio no filme em comparação ao livro. Como no texto escrito o narrador é Ivan, este passa a ser, naturalmente, o centro das atenções. Todos os acontecimentos são filtrados pelo seu olhar. No filme, a câmera observa as personagens “de fora”. Ivan passa a ter um peso bem menor na narrativa, apesar de ainda ser o protagonista da história. Anísio, em contrapartida, cresce bastante no decorrer da obra cinematográfica. Pode-se até dizer que ele, num dado momento, capta para si toda a atenção do espectador.

Posto isso, o diretor faz várias alterações em sua adaptação fílmica. Diversas passagens recordadas por Ivan são suprimidas. Pode-se citar, por exemplo, as que se referem ao delegado Junqueira, ou a seus pais. Por outro lado, Anísio ganha destaque. Suas aparições com Marina são bastante detalhadas, enquanto surgem apenas mencionadas no livro. Pode-se dizer, inclusive, que há momentos em que Ivan é substituído por Anísio como narrador em primeira pessoa. Isto ocorre em dois momentos: logo no início, quando os sócios vão contratar o assassino, Anísio não aparece e a câmera representa o seu olhar; o mesmo acontece quando ele está chegando à construtora pela primeira vez: a câmera são os seus olhos enquanto caminha pelas dependências do prédio.

Há, ainda, outros exemplos de alterações geradas pela adaptação do livro ao cinema. Um deles é a busca por economia, ocasionada, inclusive pelos problemas orçamentários de uma produção cinematográfica. Nessa tentativa de sintetizar a linguagem literária, diálogos são encurtados, seqüências alteradas ocasionando a supressão de certas passagens, repetições são extintas. Outra alteração visível é a possibilidade de aproveitar diferentes talentos do elenco para enriquecer ainda mais o texto e aproximar o espectador. Exemplos disso são a presença de um ator músico como bandido – o que visivelmente traz alterações no linguajar de sua personagem, bem como a adequa, devido a sua experiência de vida, aos ambientes por ela percorridos – e de um outro músico representando ele mesmo – o que, sem dúvida, transmite maior realismo à obra e causa impacto positivo na audiência.

É possível mencionar, ainda, algumas táticas empregadas pelo diretor na busca por exprimir adequadamente no cinema – meio de expressão predominantemente visual, em que pensamentos não são tão fáceis de descrever – os tormentos psicológicos das personagens. Uma delas seria a utilização de planos muito fechados, mostrando os rostos dos atores em close. A câmera é freqüentemente posicionada sobre o ombro de um dos interlocutores, exibindo detalhadamente suas expressões. Esse primeiro plano é utilizado em vários momentos, numa tentativa de passar para o espectador o que cada um está sentindo.

Outras maneiras de expressar a tensão que perpassa toda a narrativa são a câmera ágil, muitas vezes empunhada sem suporte; a exibição de determinadas seqüências buscando a confusão, o delírio, através de montagem em paralelo, do uso de flashback e flashforward e da inserção de eventos imaginários; da luminosidade difusa, colorida e vibrante de bares, boates, casa de karaokê e de um bordel; por fim, de uma trilha sonora agressiva, contundente. Todas essas ferramentas, que estão à disposição do diretor, ajudam a criar o clima de tensão, rapidez e violência expresso de outro modo no texto escrito. É preciso mencionar, contudo, que o escritor pode fazer uso dessas mesmas ferramentas empregadas pelo cinema, principalmente o ir e vir temporal, a montagem paralela e os cortes bruscos de cenas.

Por fim, pensando em tradução como recriação, pode-se afirmar que Beto Brant, lançando mão de recursos técnicos inerentes ao cinema, muita criatividade e sensibilidade, conseguiu transpor para a tela o clima tenso, violento e sem esperança do drama urbano descrito por Marçal Aquino. A adição de algumas cenas, a supressão de outras, a redistribuição do peso das personagens e a originalidade na montagem foram alguns dos recursos empregados pelo diretor, os quais alteraram, obviamente, a obra original. Seria, claro, impossível pensar que tal não fosse ocorrer, já que buscar fidelidade cega não condiz com liberdade criadora e, certamente, conduziria ao fracasso qualquer tentativa de adaptação. Disto fugiu a equipe em questão, pois soube retirar a essência de um livro e transpô-la para outro objeto artístico, de valor não inferior ao primeiro, e que, visto em conjunto com a obra original, sem dúvida enriquece a experiência de fruição estética do leitor/espectador.