quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Ayrton Senna


Certamente não sou alguém a quem se possa chamar de religioso. Desde os dezesseis anos, quando Noé e sua arca passaram a me causar sérias desconfianças intelectuais, meu ceticismo vem aumentando - tanto em relação às escrituras e suas interpretações, quanto, principalmente, à organização das igrejas, entre elas a Católica, e a seus potentados. Ainda assim, posso dizer que sinto, de modo bastante contraditório, um forte sentimento de religiosidade que se manifesta de diferentes modos e em variadas ocasiões, sendo algumas delas bastante inusitadas.

Esse sentido de religiosidade, de estranheza perante o desconhecido, de assombro ante o inexplicável, manifesta-se repentinamente, e repetidamente, nas mais diversas ocasiões e lugares, sendo a motivação deste sentimento muitas vezes indeterminada. Contudo, no caso que vou relatar, a razão é de fácil percepção. Acredito firmemente que muitos têm a mesma sensação que eu, talvez manifesta até de um modo mais vigoroso, e agradeço que assim seja, pois não tenho vocação para vidente, feiticeiro ou médium, e não gostaria, de modo algum, de ser o único a senti-la.

O caso a que vou me referir é o da tão lembrada, e lamentada, morte do Ayrton Senna. Assim como no dia 11 de setembro de 2001, qualquer um que viveu o primeiro de maio de 1994 e tinha idade suficiente para não calçar os sapatos de modo invertido, lembra-se perfeitamente do que estava fazendo no exato momento do desastre. No meu caso, recordo-me de estar acordando com uma tremenda ressaca, de ver, quando cruzei a porta do quarto, meu pai sentado no sofá da sala, o de três lugares, e do barulho da TV transmitindo a corrida. Como de costume, perguntei se o Senna já tinha vencido, pois as duas primeiras provas do ano haviam sido ruins para o piloto brasileiro e sabia que ele viria com tudo para San Marino. Para meu grande assombro, ele respondeu, desolado, que o Ayrton havia morrido. Abismado - eu, um jovem e destemido universitário, não supunha que essas coisas acontecessem -, corri para frente do televisor a fim de desmascarar aquela brincadeira de mau gosto. Assim que olhei para a tela, entretanto, percebi que não se tratava de uma pegadinha e que o caso era grave. Logo que vi seu corpo no chão, naquela posição com "pés de defunto" - pois estes estavam abertos, distantes, imóveis, iguais aos dos mortos - senti que não havia mais o que fazer e fiquei estático, atônito, em pé, defronte ao aparelho. A voz do Galvão Bueno, triste, chorosa, soando qual um réquiem, associada àquela terrível imagem, agia como um estímulo hipnótico em meu cérebro, impedindo-me de sair da minha letargia, do meu torpor. Quando, finalmente, de modo mecânico, sentei-me no outro sofá e vi o helicóptero levar o corpo, quis ter um fio de esperança, tentei nutrir uma vaga ilusão, mas, na realidade, sabia que uma importante história havia se encerrado.

Logo que tudo se consumou, eu, que sempre fui fã do Nélson Piquet - o primeiro brasileiro campeão que tive a oportunidade de acompanhar - e não tinha tanta simpatia assim pelo Senna, fraquejei, dei o braço a torcer, deixei-me levar pela força do momento e percebi que toda aquela rixa, a disputa ferrenha e a inimizade feroz só faziam sentido enquanto havia vida. Minha má-vontade para com o Senna, todos os argumentos racionais para não gostar dele, todas as desconfianças e picuínhas, tudo, enfim, caiu por terra. Naquele momento me dei conta de como eram pequenas e sem importância as minhas convicções, pois, diante da morte, muitas vezes o essencial surge, cristalino; a verdade aparece, inegável; freqüentemente o véu ilusório se desvanece, deixando transparecer o óbvio, que, apesar de estar bem diante de nós, é comumente ignorado. Para resumir, devo confessar-me: passei a ver nele o melhor piloto de todos. Assumo, portanto, que não fui daqueles que insistiram no erro - pois acredito, sim, que estava enganado -, fui dos que mudaram de opinião. Podem chamar-me de "Maria vai com as outras", de pusilânime, ou, como diria João Ubaldo Ribeiro, de "tartamudo oligofrênico", mas a verdade é que mudei meu pensamento em relação ao Senna, e foi justamente naquele fatídico momento que isto ocorreu. É verdade que não digo isso com orgulho, pois pode parecer oportunismo ser um fã de última hora, do mesmo modo que pode soar falsa a amizade póstuma - ver o caso do Alain Prost. Pelo contrário, afirmo tudo isto com humildade, e também com uma ponta de arrependimento, mas também falo, certamente, como alguém que teve coragem de admitir um erro e que, passados 13 anos, acredita ter agido acertadamente.

O período que se seguiu à morte do Senna foi composto por choro, lamentaçõs e piadas - os mais velhos devem se lembrar que o pessoal não perdeu a oportunidade. Naquele tempo, a Internet não estava disseminada como agora e as pilhérias não foram propagadas via correio eletrônico, mas boca-a-boca. Devo dizer, contudo, que algumas eram bastante engraçadas, mesmo que de mal gosto. Em contrapartida, houve momentos emocionantes, sendo que um dos mais interessantes e simbólicos de toda esta tragédia deu-se quando, na segunda-feira após a morte do Ayrton, um colega de faculdade chegou perto do grupo em que eu estava e, desolado, disparou a seguinte frase: "Morreu o Speed Racer". Para os da nossa geração, o piloto do Match 5 era um mito, e a associação com o corredor brasileiro ficou para sempre em minha mente.

Ao receber de um amigo um vídeo que mostra o Ayrton dentro do carro instantes antes da corrida, tive a motivação para escrever este texto. Como disse no início, não sou religioso, mas creio ter um certo sentimento de religiosidade - que alguns talvez chamem de misticismo ou de superstição - e esse sentimento foi tocado pelas imagens a que assisti. No cockpit de sua Williams, Senna parecia visivelmente alterado, abatido, desconfortável. Olhava para dentro de si mesmo, pensando não sei em quê - talvez no acidente do Rubinho na sexta-feira anterior e de sua conseqüente ausência no grid, ou então na morte de seu colega Ratzenberger, ocorrida no sábado. Alguns repórteres afirmam que ele estava preocupado com as condições da pista e talvez preferisse não correr. A verdade é que, vendo sua fisionomia nos momentos antedecedentes à prova, parecia que um presentimento o estava pertubando. A impressão que se tem é que ele percebia algo de diferente, previa um desastre. Anteriormente, Senna já havia manifestado uma experiência no mínimo sui generis: durante uma determinada corrida, acho que foi em Mônaco, ele afirmou ter se concentrado tanto naquela repetição de voltas que teve uma alteração em sua consciência, tendo a nítida impressão de ver a si mesmo por um ângulo externo, enxergando-se de cima. Se eu não estava bêbado ou delirando, ele realmente fez esta declaração, que me pareceu, naquela época, bastante absurda, um perfeito disparate. Talvez hoje eu não esteja assim tão convicto.

Conheço uma série de pessoas das mais diversas crenças, descrenças, e religiões, sendo que algumas acreditam em fenômenos paranormais e outras tantas são espíritas. Para elas, esse tipo de acontecimento desperta bastante interesse e não tanta estranheza, mas, para mim, que tendo a ser sempre racional, algo assim perturba, choca. Este caso, de modo exemplar, gerou em mim um sério baque: ver-me com a nítida impressão de que algo fora de meu entendimento, alheio ao aparentemente seguro mundo regido pelos sentidos, estava ocorrendo naquele primeiro de maio, é consideravelmente perturbador. Olhar o semblante do Senna dentro da Williams, momentos antes da corrida, foi algo, no mínimo, tocante, capaz de fazer rever determinadas certezas, de repensar certas convicções. Foi, sem dúvida, uma experiência inquietante, que traz à memória o sempre citado adágio espanhol: Yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay.

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