POEMA DE SETE FACES
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do -bigode,
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
De Alguma poesia (1930)
Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade
LET'S PLAY THAT
Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
Let's play that
Do CD Torquato Neto - Todo Dia É Dia D
Torquato Neto (musicado por Jards Macalé)
Vários Artistas, Dubas Música, 2002
Do CD Torquato Neto - Todo Dia É Dia D
Torquato Neto (musicado por Jards Macalé)
Vários Artistas, Dubas Música, 2002
ATÉ O FIM
Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
Inda garoto deixei de ir à escola
Cassaram meu boletim
Não sou ladrão, eu não sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
Mas vou até o fim
Eu bem que tenho ensaiado um progresso
Virei cantor de festim
Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso
Em Quixeramobim
Não sei como o maracatu começou
Mas vou até o fim
Por conta de umas questões paralelas
Quebraram meu bandolim
Não querem mais ouvir as minhas mazelas
E a minha voz chinfrim
Criei barriga, minha mula empacou
Mas vou até o fim
Não tem cigarro, acabou minha renda
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim?
Eu já nem lembro pr'onde mesmo que vou
Mas vou até o fim
Como já disse, era um anjo safado
O chato dum querubim
Que decretou que eu tava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
Do LP Chico Buarque - Polygram, 1978
Chico Buarque de Hollanda
COM LICENÇA POÉTICA
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.
Adélia Prado
In Adélia Prado, Poesia Reunida
Siciliano, São Paulo, 1991
In Adélia Prado, Poesia Reunida
Siciliano, São Paulo, 1991
ANOTHER SON - A BASTARD ONE
Quando nasci um anjo confuso
Apareceu para mim.
Falou de tempos futuros,
Discursava em grego e latim,
Descrevendo alguns dias escuros
E seus mais complexos dilemas.
Espírito do tempo era um dos temas.
Seria este anjo alemão?
Deve ter lido filosofia,
Que é causa noite e dia,
De reconhecida confusão.
Coisa que não se entende direito.
Discurso difícil o do sujeito.
Inda mais pr'uma criança
Que nascida ainda não era.
Que sem ter desconfiança,
Sequer sobre quem o gera,
Tinha o juízo muito estreito.
Mas o estrago já estava feito
E a confusão estabelecida.
Passado o véu da lembrança,
Sendo a memória perdida,
Restou apenas sua herança
De permanente desconforto.
Pau que nasce torto morre torto...
Confuso desde o berço
Crescido no sem rumo
Desde o fim até o começo
Levado sem um prumo
Sem conhecer uma missão.
Mas passou o tempo da razão.
No lugar correto na hora certa,
Mudança virou palavra da moda.
Confuso mas de mente esperta,
Coisa que chateia e incomoda,
Começa então a ambição.
A duras penas aprendida a lição,
De quem desafina muito apanha
E ofende aquele que não aplaude,
Entende a verdade de que sem manha
Não se combate a grande fraude
Nem o que há de mais escuso.
Impossível então ficar recluso.
Terão sido outros visitados?
Mais alguns que possam refletir,
Não estando mais vendados.
Que sejam poucos, mas devem existir
E não seja eu afinal um intruso,
O único conhecido de um anjo muito confuso.
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