segunda-feira, 5 de maio de 2008

Cenas do trânsito 2 - Seu Cardeal

Seu Cardeal esteve casado por exatos sessenta e um anos. Dona Amelinha, flor de quatorze primaveras que colhera na mocidade, fora sua companheira por toda a existência. Juntos, tiveram oito filhos criados vivos, os quais elaboraram arduamente dezessete netos, até o momento - Eita mundão! Dois fazendo oito e oito tendo só dezessete. A proporção mudou muito com a passagem dos tempos. Ainda mais que tem alguns que nunca vão produzir nada... - A família conta ainda com dois bisnetos, que sempre foram os mimos dos patriarcas. Contudo, como nada é eterno, dona Amelinha se foi. Foi docemente, assim como viveu. Tal qual um passarinho, adoeceu, definhou e morreu num breve espaço de tempo. Devido à grande ligação que unia o casal, seu Cardeal não conseguiu se recuperar do baque.

Ele, que fumava cigarros apenas de vez em quando, sempre aliados a uma cachacinha medicinal, adorava mesmo era os charutos. Consumia os cubanos - raramente, devido aos custos - e principalmente os baianos. Sempre havia um na caixinha para compartilhar com os amigos. Eram conhecidas as tardes de xadrez às quintas com o seu Onório, envoltos na fumaça e num silêncio concentrado. Dizia-se à boca miúda que o visitante era muito melhor jogador, mas deixava o outro vencer de vez em quando para que o prazer do embate e, principalmente, do fumo perdurasse indefinidamente. Dona Amelinha, claro, sempre estava ao lado do marido, inalando porções da névoa espessa, ouvindo o vazio de vozes entrecortado pela sonoridade macia do veludo das peças em contato com o tabuleiro e fazendo seu habitual crochê. Toda a família era abastecida por suas criações, que sempre tinham destino e momento certo - ela controlava metodicamente os aniversários e datas importantes. Todos ganhavam toalhas, centros de mesa, colchas de cama, roupas para as mulheres irem à praia e outros tantos itens de seu repertório.

Dona Amelinha, companheira inseparável, dividia com ele, além das tardes como expectadora de xadrez, um tabuleiro de gamão, incontáveis lembranças - registradas em fotos de infinitos álbuns -, enormes extensões de silêncio cúmplice e, principalmente, o café. Era um hábito sagrado na casa, pontualmente às três e meia da tarde, o consumo do café. Café coado, forte e doce, como somente ela sabia fazer. Esse costume tinha um caráter religioso no horário e na obrigação. Nos sessenta e um anos que estiveram juntos, raríssimas foram as vezes em que não houve o ritual do café, sendo que todos esses momentos estiveram relacionados a grandes crises: a morte de um dos filhos durante o parto, o falecimento dos pais do casal e um pequeno flerte que seu Cardeal teve com uma certa dama. Como ele era dono de um comércio que funcionava na parte da frente da casa, sempre estava presente no meio da tarde para consumir a deliciosa bebida negra. Geralmente ela vinha acompanhada de queijo de coalho, bolacha d'água e algum dos bolos que a matriarca preparava com grande habilidade.

Bem, o fato é que, sem dona Amelinha e sem o café, o homem ruiu. Ruiu como as paredes de um castelo caem ante um ataque feroz. Além do cafezinho, já foi dito que seu Cardeal sempre adorou os charutos. Depois da morte da mulher, contudo, parece que esse hábito de décadas disparou um processo que estava engatilhado há tempos em seu corpo. O homem, que antes possuía uma carona vermelha, carnes vastas e uma boa dose de toucinho, secou como as plantas deixadas sem cuidado ou como os pés de pimenta expostos a presenças maléficas. Perdeu, em poucos meses, mais de vinte quilos. Ficou triste, de olhar fixo no infinito, sentado pelos cantos, em silêncio. A maioria dos velhos não consegue superar a perda do companheiro. Talvez se perguntem por que razões deveriam continuar e se lembrem de que não há mais ninguém para compartilhar toda uma vida. Na verdade, é possível que esta vida esteja indo embora, escoando pelo ralo do tempo. Teria ela existido realmente? Ninguém mais pode responder a essa indagação. Não há testemunhas, agora, para comprovar o que passou.

Destruído, mudo e esquelético, certo dia seu Cardeal foi bater na emergência hospitalar. A família já sabia do câncer e todos tiveram certeza de que essa crise representava seus últimos estertores. Ele sempre se negara a fazer o tratamento, pois sabia que não havia esperanças - e nem as poderia querer. Dois dias após a internação, foi mandado de volta a casa para morrer em paz. Levaram-no, então, para a residência do filho mais velho, que ficava em frente à sua antiga loja. Lá seria possível que alguém ficasse com ele o tempo inteiro, prestando-lhe os cuidados necessários. Seu Cardeal permaneceu deitado durante todo o dia de seu retorno e não era esperado que sobrevivesse às vinte e quatro horas seguintes. O homem, contudo, gostava de surpresas. Contrariando as expectativas, amanheceu, começou a entardecer e até apresentou uma pequena melhora. Conseguiu dizer algumas palavras e pôde caminhar um pouco, mesmo sob o efeito da morfina. Estavam se aproximando as três e meia da tarde, seu Cardeal sentado em uma pequena poltrona da sala, e sua neta, responsável por observá-lo naquele momento, recebe um telefonema do namorado. Distraída pelos assuntos amorosos, não percebe que é chegada a hora do café...

***



Denis precisa deixar o escritório no meio da tarde para visitar um cliente. Já devia ter falado com o sujeito há dois dias e o patrão não permitia que ele se esquecesse disso. O cara era um saco - o cliente, mas o mesmo serve para o chefe - e Denis postergou inconscientemente sua ida à loja do dito cujo. Sem mais poder adiar, saiu apressado, pois ainda tinha que voltar para resolver algumas pendências, pegou o carro e foi encarar o inevitável. Ele, felizmente, gostava de dirigir - talvez não tanto com o trânsito caótico desta enorme cidade - e podia dar-se ao luxo do friozinho do ar condicionado e de uma boa música. Seleciona algumas de sua preferência e programa o som do carro de modo aleatório. Denis gosta de músicas antigas, muitas mais velhas do que ele, e hoje escolheu alguns de seus clássicos. Dirigindo e batucando no volante, ouve um velho blues dos Yardbirds. Segue o ritmo compassado de Little Red Rooster, com a voz rouca e forte de John Lee Hooker e as grandes guitarras da banda - pela qual passaram os lendários Jeff Beck, Jimmy Page e Eric Clapton. Empolga-se com a sonoridade da música negra, passa as marchas de modo agressivo, freia com a ponta do pé e acelera com o calcanhar. Faz as curvas de maneira ágil e sente um pouco de liberdade, longe do trabalho, do patrão e dos clientes chatos. Começa, então, a tocar What a woman! de Howlin' Wolf, um gigantesco gênio do blues com sua também enorme voz, e Denis continua imerso em sua viagem. Dirige por ruas estreitas, de calçamento, às vezes o trânsito pára completamente, mas ele está bem. A música tem a capacidade de apaziguar seu espírito. O trânsito flui um pouco e ele pode acelerar mais e sentir o cansado motor se esforçando. O modo aleatório sorteia, então, Mrs. Robinson.

Paul Simon escreveu essa música para um filme chamado The Graduate - mais conhecido como "A primeira noite de um homem" -, no qual a tal Mrs. Robinson tem um caso amoroso com o personagem interpretado por Dustin Hoffman. É uma música interessante, pois tem uma parte intraduzível - o koo-koo-ka-choo - e fala do grande jogador de beisebol Joe Di Maggio, o sortudo e exasperado primeiro marido da Marylin Monroe. Denis sabe de tudo isso porque gosta de música e assistiu diversas vezes ao filme, que por sinal foi fonte de inspiração para várias produções similares. Assim, com a cadência do blues quebrada pela música leve e rápida da dupla Simon e Garfunkel, Denis dirige despreocupadamente seu carro. Segue por uma rua estreita, de forte movimento, pela faixa que deveria ser a lenta, fazendo manobras defensivas e outras nem tanto. Não é por pressa que ele guia assim, apenas é seu jeito. Ele está fazendo coro àquela passagem que fala A nation turns its lonely eyes to you... quando seus olhos captam uma cena espantosa.

Da calçada surge um velhinho esquelético, com ataduras ou esparadrapos no braço esquerdo e na região próxima ao pescoço, caminhando lentamente, feito um zumbi. Ele olha diretamente à frente, como que hipnotizado por uma miragem, e progride, passada após passada. Sua mão parece segurar algo, mas não há nada lá. O homem está cruzando a rua e o carro segue velozmente na direção dele. Com uma manobra rápida, Denis consegue desviar-se da figura esquálida, mas não tem tempo de sentir alívio. O motorista do carro à sua esquerda infelizmente não conta com a mesma sorte. Ouve-se o barulho arrastado de uma freada, seguido de um baque surdo. Denis, assustado, pára o carro. Sua respiração demora para voltar ao normal. Perto do local da batida, começa a aglomerar-se uma multidão. São precisamente três e trinta e cinco da tarde.

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