sábado, 5 de janeiro de 2008

Toca Filosófica


O universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um estreito vestíbulo, que desemboca em outra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do vestíbulo, há dois sanitários minúsculos. Um permite dormir em pé; outro, satisfazer as necessidades físicas. Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva ao infinito. No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que essa duplicação ilusória?), prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito... A luz procede de algumas frutas esféricas que levam o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.

Não, claro que não, o parágrafo acima não é meu, quem dera. É um excerto do ensaio A Biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges. Fala de uma imensidão de livros, em infindas salas hexagonais, contendo todas as possíveis combinações dos símbolos alfabéticos. Para encontrar o que chamamos de coerência em um ambiente assim é necessário gastar, talvez, uma vida inteira. Em compensação, pode-se ter certeza de que lá estão presentes A Odisséia, o Quixote, ou As Mil e Uma Noites em incontáveis combinações, diferindo entre si, quem sabe, somente por um único sinal gráfico. Os habitantes deste universo, os bibliotecários, vêm tendo seu número reduzido gradativamente, pois são constantes vítimas de conflitos entre grupos rivais ou de fanáticos das mais variadas ideologias, sendo também freqüentemente acometidos por depressão, loucura e doenças pulmonares. Dizem que seus restos mortais são lançados no infinito vão, onde se decompõem lentamente em sua queda eterna. Melancólico, poético, não sei que adjetivo usar, mas a imagem de um mundo assim é certamente muito forte e recorrente em minha mente, pois sempre que me lembro de um determinado local, vem-me à lembrança essa descrição do escritor argentino.

O local a que me refiro é conhecido, por um secreto grupo - ou seria seita? - de afortunados bibliotecários, como Toca Filosófica. Sempre que entro nesse lugar, fisicamente ou em lembrança, tenho a convicção de se tratar de um dos hexágonos borgianos - ainda que em nosso universo quadridimensional esse ambiente pareça ter sido construído apenas com as quatro paredes convencionais. Do mesmo modo, também me parece impossível pensar em seu curador como outra coisa a não ser um daqueles alucinados personagens recém-materializado, oriundo da mente do argentino. Esse bibliotecário em particular, seguindo sua tão propalada vocação de líder religioso - sim, religião é uma de suas paixões -, arrebanha - com seu carisma inimitável, sua oratória sertaneja e sua erudição proveniente de um contato secular com tão precioso acervo - uma legião de seguidores, infectados por um mal comum às traças, a alguns esquisitões, a diversas modalidades de lunáticos e a outros assemelhados: a bibliofilia - no caso das traças talvez seja bibliofagia. Essa doença que, como tudo nesse mundão de meu Deus, têm duas facetas, uma boa e outra não, contagia a todos os que entram em contato, seja com o bibliotecário-pastor, seja com os livros aos quais ele pertence. Sim, é isto mesmo, ele pertence aos livros, e não o contrário. É o mesmo fenômeno que ocorre com os personagens de Borges, habitantes de um mundo recheado por infinitas obras - neste caso em especial, elaboradas por mãos divinas, ou melhor, demiúrgicas.

Cabe aqui uma correção. Empolgado com a capacidade do bibliotecário em estimular, mesmo que indiretamente, o encanto pelas escrituras - em minúsculo -, acabei por incorrer numa inverdade: afirmei que o Mal da Toca atingia a todos. Como pude esquecer as minhas aulas de biologia, ainda que distantes no tempo, nas quais aprendi um pouco sobre genética e também acerca de doenças contagiosas? Como é possível não ter em mente que doença alguma é capaz de atingir toda a humanidade? Joguei Darwin no lixo e não levei em conta que, numa amostra tão grande quanto a espécie humana - seria algo em torno de 6 bilhões? -, é impossível não encontrar diferentes genes que propiciem a seus portadores imunidade a qualquer mazela, conhecida ou vindoura. Assim, mesmo que a maioria se infeccione ou pelo menos sinta uma alteração de estado favorável ao entrar na aludida Toca Filosófica, existem aqueles que são imunes, nos quais os agentes infecciosos do referido mal são inofensivos. Entre os que estão neste grupo, há o célebre caso de uma mulher - diz-se que bastante interessada pelo bibliotecário -, ignorante acerca da origem e do valor de tão grande acervo, que sugeriu a doação do mesmo ao ferro-velho. Essa é uma idéia que mistura falta de sensibilidade com total inadequação técnica, pois, em tempos de aquecimento global, ela deveria ter, ao menos, sugerido a entrega dos tomos a uma usina de reciclagem de papel. É necessário, ainda, mencionar uma outra categoria de pessoas, além dos doentes e dos imunes: os alérgicos. Nesse grupo enquadro a mãe deste que redige, constante sofredora ao freqüentar esse e outros ambientes, repletos de pequenas criaturas que coabitam o lar dos bibliotecários espalhados por aí.

Afora esses imunes à bibliofilia e aos sofredores com a possível insalubridade do ar, todos os outros manifestam admiração e reverência ao rico acervo e ao empenho demonstrado por seu curador, um dos poucos bibliotecários remanescentes do mundo criado por Borges, habitante dessa "Babilônia de Papel", como diria uma certa poetisa. Esse elemento, conhecido por alguns do meio como Velho Jagunço, Livreiro Audaz, ou mesmo Moita Brava - aquele que adora dar informações de ruas para a turba ignara -, é carinhosamente chamado pelos amigos de Canalha - impossível passar despercebida a semelhança desse apelido com o do escritor teuto-americano Charles Bukowski, conhecido como Velho Safado. Pois bem, esse canalha tem lido, escrito e militado no mundo das letras por quase cinqüenta anos, sendo um dos grandes divulgadores culturais de sua região. É válido ressaltar que através de sua iniciativa, em conjunto com outros canalhas locais, diversos movimentos literários tomaram corpo e ajudaram a enriquecer o mapa artístico do grande ABC.

Esse bibliotecário foi um dos fundadores do Colégio Brasileiro de Poetas de Mauá; escreveu resenhas, artigos, críticas, poesias e contos para vários jornais; prefaciou diversos livros e publicou outros tantos; foi livreiro em São Paulo, conhecendo todos os meandros desse comércio na capital paulista; enfim, ajudou a aumentar a riqueza da grande biblioteca que, mesmo sendo infinita, cresce com a presença de novas aquisições. Apesar de já ter lançado várias obras, tenho a impressão de que muito ainda está por vir, de que existe bastante material guardado, no papel e em sua mente fértil. Acredito que seremos brindados no futuro com mais de seus textos, cujas marcas principais são a imensa criatividade, o colorido regional de sua Chapada Diamantina, o humor que não perdoa nada nem ninguém, e a abundância de personagens com nomes esdrúxulos, dentre os quais me recordo de Genocídio Geronso Garrafino - de iniciais GGG, nada a ver com KKK de Ku Klux Klan-, pastor da igreja "Jesus Virá, Aleluia!...", o qual possui uma marca do seu criador: o talento de pregador, arrebanhando fiéis e inimigos. O pastor Genocídio proclama o reino dos céus, mas sempre com uma boa dose de pilantragem, enquanto o bibliotecário, canalha, mas não pilantra, prega o culto ao universo das letras, das idéias, o culto da infinita biblioteca. Diversos e assemelhados, criador e criatura enriquecem nossa vida e nos dão prazer com seus causos, piadas e lorotas.

Parabéns ao bibliotecário, Mr. Theodor.

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