quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Antígona, o Senhor 903 e o Argelino

Morreram. Depois de tanta luta, tanta ambição, tanto sofrimento, morreram. Dois irmãos, dois corpos, dois destinos. Coube a um deles cerimônia formal, pomposa, digna. Ao outro, restariam os abutres. Que razões haveria para tal diferença, se irmãos?

Decretado o edito, tendo a lei criado corpo, a Polinices não cabia nem o choro, nem o sepulcro. Creonte, investido de poder real, manifesta a norma a ser quebrada por Antígona. Ela, irmã e representante da família e de suas tradições, é incapaz de seguir as ordens positivas, pois outros valores lhe são mais caros.

A Antígona impõe-se a força de um direito natural baseado em crenças religiosas, na ética e na tradição. Para a maioria das civilizações clássicas, bem como para algumas modernas - como a japonesa ainda no século XX -, o culto aos mortos tem caráter religioso - bastando lembrar os deuses lares romanos -, sendo, na maior parte das vezes, venerados os bons antepassados e temidos os maus. Para a personagem que dá nome à peça de Sófocles, enterrar Polinices era um dever com força superior às ordens do rei. Assim, contrariando Creonte, ela chora pelo irmão, realiza seu funeral e é condenada à morte.

Esse conflito entre Antígona e Creonte é bastante conhecido, sendo debatido por filósofos, juristas e outros pensadores, que o classificam, grosso modo, como um embate entre o Direito Natural e o Direito Positivo. A existência de divergências entre o que é aceito normalmente por uma sociedade - mediante tradições, crenças e costumes incorporados à vida cotidiana - e o que seu ordenamento jurídico preceitua é, infelizmente, fenômeno bastante comum. Nem sempre os legisladores acompanham a evolução de seu povo ou se interessam por fazer com que as normas reflitam a sociedade. Em muitos casos, estes legislam com interesses outros que não o público, tornando as normas injustas e inaceitáveis. Essas discrepâncias muitas vezes geram situações dramáticas, causadoras de comoção social e deflagradoras de questionamentos acerca da legitimidade daqueles que exercem o poder.

As leis, por sua natureza, são normas que buscam cercear, em nome do bem comum, direitos individuais - como diria Foucault, "poder é tudo aquilo que reprime" -, sendo a busca pelo justo e pelo correto - conceitos relativos - o ideal que deveria nortear o legislador, tendo como referência sempre o interesse público. Contudo, normas são formuladas em meio a muitos conflitos e representam a opinião de uma parcela apenas das pessoas. Assim, é comum que a necessidade e o desejo individual entrem em desacordo com elas.

Além da tragédia de Antígona, é possível encontrar em inúmeros outros textos casos de conflitos entre normas legalmente instituídas e comportamentos guiados por valores sociais, como a tradição, a ética e a moral. Dois bons exemplos encontram-se em Recado ao senhor 903 - de Rubem Braga - e As flores do argelino - de Marguerite Duras.

Esses conflitos ocorrem, por exemplo, no texto Recado ao senhor 903, onde o vizinho do 1003, ou Senhor 1003, não nega a razão legal do outro quando este o recrimina por perturbar o silêncio noturno. Ele reconhece que depois das 22 horas é proibido fazer barulho e que o condomínio tem punições estabelecidas para quem infringir essa norma. O que o deixa insatisfeito e que o faz desabafar é o caráter desumano do debate. As pessoas moram próximas, mas não sabem os nomes umas das outras, exigem que seus direitos sejam respeitados, mas não buscam um mundo melhor. Há aí o contraste entre a norma, a realidade fria, e o ideal humano. Para reforçar o caráter natural que o senhor 1003 dá a si mesmo, ele se compara ao Oceano Atlântico “bramindo ao sabor da maré”. Diz que é agitado, barulhento, e que desrespeita os horários civis. Afirma que vai tentar mudar, fazendo outra comparação entre ele mesmo e a natureza: passaria a ser um “manso lago azul”. Procuraria não fazer mais barulho à noite e não incomodar a vizinhança, ficando “dentro dos limites de seus algarismos”, não mais uma pessoa e sim um conjunto de números e códigos. Esse desabafo irônico é concluído quando ele manifesta sua real opinião, seus verdadeiros sentimentos: ele sonha com um mundo onde as pessoas compartilhem suas vidas, seus bens, ouçam música juntas, comam do mesmo pão e bebam do mesmo vinho. Possam se visitar, aproveitar a vida, “agradecer o brilho das estrelas”, “a amizade entre os humanos, o amor e a paz”. Assim falando, o senhor 1003 enaltece o lado humano das relações, lamentando que estas sejam normalmente reguladas por um frio pedaço de papel.

No texto As flores do argelino, Marguerite Duras faz um relato comovente da situação de um imigrante africano na França. Diferentemente do senhor 1003, o argelino não tem espaço para manifestar o desejo por um mundo melhor, não pode desabafar. Ele é apenas alguém tentando sobreviver, buscando defender o mais importante dos direitos naturais - o de viver - em um mundo que não o quer, que o persegue, mas que, todos sabem, precisa dele. Aqui, a Lei proíbe o exercício do trabalho que poderia garantir sua miserável existência: a venda de flores. Os policiais apreendem suas flores e as espalham pelo chão, levando o argelino à delegacia ao final da estória. Nesse meio tempo, uma senhora incentiva a ação dos oficiais, externando seu preconceito e sua intolerância. Quando parecia que um negro retrato da humanidade estava sendo esboçado, surge outra senhora que, infringindo a lei, apanha algumas flores e as compra do rapaz. Seu gesto é repetido por outras senhoras até não restar mais flor alguma a ser vendida. A atitude das mulheres é contrária à lei, mas não é contrária ao que elas entendem por moral, por ético. Assim, também aqui é questionado o papel da lei que desumaniza, que não é capaz de tratar de todas as situações complexas da realidade. O direito natural à vida, ao respeito e à dignidade faz com que as senhoras ignorem a norma legal, se humanizem, e resgatem também a humanidade do imigrante.

Sejam os atos e pensamentos guiados pelo amor ao irmão e pelo senso de justiça, como em Antígona, ou pelo sonho de um mundo mais fraterno, como no texto de Rubem Braga, ou ainda pela solidariedade, como na história de Marguerite Duras, o fato é que eles entram em conflito com o legal, com a norma estabelecida. O que está em voga nos textos é a discussão sobre até que ponto a Lei é suficiente para tratar das questões humanas. Sendo ela criação dos homens, não estaria cheia de defeitos como nós mesmos? Seria a verdadeira justiça o que está fixado nos papéis ou haveria espaço para a interpretação humana? Não estariam as pessoas se escondendo atrás da Lei para evitar o contato com o próximo? Seja qual for a resposta, os textos mostram o ser humano vivendo esse conflito, sendo que em um deles a esperança pela vitória do espírito humano morreu com a protagonista, no outro ela existe apenas em sonho e no último ela ganha vida no mundo concreto através de um pequeno gesto.

Observação: A referência a Foucault foi retirada do texto de Sueli Cavendish, Um romance mirando outro, seu avesso, acessível no endereço http://www.pernambuco.com/diario/2002/04/09/viver7_1.html.

2 comentários:

Unknown disse...

Fantomas, seu discurso não me parece piegas, nem reflete uma visão de jurista apaixonado. Ao contrário. Suas palavras defedem uma ética relativa e apresentam atos realmente humanitários. Nem sempre o legal defende o direito das pessoas e o respeito ao próximo. Transgredir, às vezes, pode sinalizar em algumas circunstâncias os sentimentos mais puros do ser.

João Ninguém disse...

Caro D.C. ou seria Fantomas?,

Seu texto é genial - graças a minha "evolução" internética descobri a loca onde esconde o que escreves - muito bom, muito bom assim como um acorde de J. Coltrane: ácido e agradável.
Um abraço e ainda espero comentários sobre "Tambores de São Luís" do Josué Montello, apesar de quem indicou não ser muito confiável.