quinta-feira, 23 de julho de 2009

A TRAGÉDIA DE ÉDIPO



(Pai e filho conversam na sala de casa)


– Pai?
– Oi, filho.
– Me conta uma história?
– Agora?
– É, pai.
– Qual história, filho?
– Não sei, inventa uma.
– Tá bom. Era uma vez uma menina que andava pela floresta...
– Tem lobo essa história, pai?
– Acho que sim, mais para frente.
– Sem essa de lobo! O senhor já contou um monte dessas!
– Bem, sem lobos fica difícil. Que tal a do Aladim e...
– Hum, hum. Já assisti o filme.
– E se fosse um ogro que vive numa floresta...
– Shrek, pai. Tá tentando me enrolar.
– Putz! Quer dizer, droga! Já que é assim, tem aquela do cara que acorda num banheiro sujo, perto de outro cara que ele descobre, mais tarde, que tem que matar para salvar a...
– Pô, pai! Pegou pesado! Tá falando de Jogos Mortais. Já vi também.
– Como é? Você já assistiu Jogos Mortais? Desde quando você assiste esse tipo de filme?
– Vi não, pai. Me contaram.
– Precisamos conversar...
– Não tem uma história mais normal?
– Pode ser. Tem a de um rei antigo.
– Rei? Parece bom.
– E é. O nome dele era Édipo. Já assistiu a quantos filmes sobre ele?
– Esse eu não conheço não.
– Bem, ele era rei de uma cidade chamada Tebas, na Grécia antiga.
– Tebas?
– Sim. Na Grécia antiga, as pessoas costumavam encenar a história desse rei.
– Como no teatro?
– Exatamente. Você sabia que o teatro surgiu mais ou menos nessa época?
– Hum, hum.
– Pois é. As pessoas faziam uma festa para comemorar a boa colheita.
– E se a colheita fosse ruim, pai?
– Bem, não sei. Acho que eles ainda agradeceriam a Dionísio, para tentar a sorte no ano seguinte.
– O rei era Dionísio ou esse tal de Édito.
– O nome é Édipo, que era rei de Tebas. Dionísio era um deus.
– Um deus? E Deus tem nome?

(O pai, para si mesmo)

– Ainda vou me ferrar!

(Voltando-se para o filho)

– Os gregos acreditavam que existiam muitos deuses. Hoje em dia, nós achamos que só tem um.
– Mas ter muitos não é mais legal?
– Pode ser, mas esquece um pouco isso. O que interessa é que eles cantavam ditirambos e dançavam para comemorar a colheita.
– Diti o quê?
– Eram umas músicas deles lá. Eles matavam também um bode em homenagem a Dionísio.
– Massa!
– O bode não gostava não.
– Dããã, pai! Claro que não!
– Teve também um sujeito chamado Tespis que decidiu fazer o papel do Dionísio pela primeira vez.
– Ninguém tinha tido essa ideia antes?
– Por incrível que pareça, não.
– Tespis é um nome engraçado.
– É sim. Desse ano em diante, quando o Tespis decidiu ser Dionísio, eles passaram a repetir a representação sempre. Com o tempo, eles acabaram esquecendo que a festa era em homenagem a Dionísio e começaram a escrever histórias para teatro.
– Coitado do Dionísio.
– É sim. Talvez os deuses morram quando são esquecidos. A história do rei Édipo vem depois dessa época, quando já havia grandes escritores fazendo peças.
– Peças?
– Sim, é o nome das histórias que passam nos teatros.
– Ah! Mas o senhor vai contar a história do rei ou não?
– Vou sim, seu apressado. Édipo era filho do rei Laio e da rainha Jocasta.
– Gostei dos nomes.
– Antes do Édipo nascer, seus pais foram a um oráculo.
– O que é oráculo?
– É um lugar onde existe uma pessoa que fala com os deuses e pode dizer o seu futuro.
– Irado! Existem oráculos hoje em dia, pai?
– Acho que o mais próximo disso é o Google!
– Fala sério, pai! O Google não pode dizer o meu futuro.
– Quem sabe daqui a algumas versões... Voltando à história, o oráculo disse para o rei e a rainha que o filho deles iria matar o pai e casar com a mãe.
– Credo! Jogos mortais é fichinha perto disso!
– Para você ver... O pior não é isso. O rei Laio, para evitar que acontecesse o que o oráculo disse, manda matar o filho.
– Que covarde!
– É, acho que não foi a melhor opção. Mas o rei estava tentando fugir do seu destino.
– E ele conseguiu?
– Deixe-me continuar a contar! O rei entregou o menino a um pastor, que deveria deixá-lo amarrado para morrer num local bem feio. Os pés do menino foram furados. Édipo, aliás, significa pés inchados.
– Pô, pai, sacanagem!
– Olha a boca! O pastor teve pena do menino e entregou-o a um colega.
– Acho que já vi isso antes.
– As coisas se repetem, filho. O outro pastor levou o menino para o rei de Corinto, que se chamava Pôlibo, e sua mulher, Mérope.
– Quanto nome estranho!
– Citroelson não é melhor e eu já conheci um.
– Coitado!
– Traumatiza, sabe? Bem, o rei Pôlibo e sua mulher decidiram criar o menino sem que ele soubesse de onde veio.
– Ele não sabia que era adotado?
– Não, até que um dia um bêbado falou que ele era filho adotivo, então Édipo foi consultar o oráculo para saber sua origem.
– Era o mesmo oráculo?
– Esse era o de Delfos. O outro, eu não sei. Não importa, o oráculo disse que ele mataria o pai e casaria com a mãe, mas não disse se ele era filho do rei Pôlibo ou não.
– Que confusão!
– É verdade. Sem ter certeza se era adotado ou não, Édipo vai embora para que a profecia não acontecesse.
– Sofre um bocado esse Édipo.
– Isso não é nada, mas não adiantemos os fatos. Édipo em fuga passa perto de Tebas e, numa encruzilhada...
– Encontrou um lobisomem.
– Não. Na verdade, não sei se lobisomens já existiam naquela época. Édipo encontrou um homem idoso num carro, seguido por criados. Esse homem o ofendeu, mandando que saísse da estrada, e um de seus criados acertou umas pancadas em Édipo. Este reagiu e matou o homem do carro e seus criados, menos um, que saiu correndo.
– Fugiu, o covarde.
– Foi. Não me lembro se ele volta a aparecer na história. De todo modo, você sabe quem era o homem do carro, morto por Édipo?
– Como vou saber?
– É, não tem como. Algum chute?
– Não.
– Tenta.
– Não.
– Tudo bem. O homem morto era Laio, pai de Édipo.
– Olha aí, pai! Que mundo pequeno!
– Se o mundo é pequeno hoje em dia, imagina como era a Grécia mais de dois mil e quinhentos anos atrás.
– E depois, o que aconteceu?
– Édipo foi para Tebas.
– E ele não sabia que tinha nascido lá, né?
– É. Quando chegou em Tebas, tinha uma Esfinge bloqueando a entrada da cidade.
– Uma esfinge igual à do Egito?
– Sim, só que essa ainda tinha nariz. Ela propôs um enigma para Édipo. Se ele não decifrasse, ela o mataria.
– Qual era o enigma, pai?
– Ela queria saber qual animal tinha quatro patas de manhã, duas de tarde e três à noite.
– E existe algum?
– Sim, o homem. De manhã, na infância, o homem engatinha, usando quatro patas; à tarde, ou seja, depois que aprende a andar, usa duas patas; na velhice, que é a noite do homem, ele usa três.
– Três?
– Sim. Suas duas pernas, mais a bengala.
– Show! O Édipo foi muito esperto.
– É. Decifrou o enigma, tornou-se rei de Tebas e casou-se com Jocasta.
– A mãe dele.
– Exatamente. Eles tiveram quatro filhos: Antígona, Ismene, Polinices e Etéocles.
– Quem é homem e quem é mulher nessa história?
– Antígona e Ismene são mulheres. Polinices e Etéocles, homens.
– Polinices parece nome de mulher.
– Também acho. A verdade é que Édipo foi um grande rei, mas os deuses, sabendo que ele casara com a mãe e tivera quatro filhos que eram seus irmãos, decidiram castigar Tebas. Eles lançaram uma peste que começou a dizimar os habitantes e acabar com as colheitas.
– Uau! Essa história tem muita ação, pai.
– Exatamente, filho. Aliás, o sábio Aristóteles comenta sobre isso em um livro.
– Quem é esse Aristóteles? O que ele tem a ver com o Édipo?
– Aristóteles foi um sujeito muito inteligente, que pensava sobre muitas coisas, entre elas, o teatro grego. Ele diz que uma peça como essa do Édipo acontece com os personagens em ação no momento presente. Isso dá vida ao espetáculo e acontece muito nos filmes que você gosta.
– Ah! Os filmes de ação.
– Exatamente, mas não apenas nesses. Ocorre na maioria dos filmes feitos nos Estados Unidos.
– E naqueles filmes que a mamãe gosta?
– Aqueles são filmes europeus. Alguns os chamam de filmes de arte. Ali é outra coisa.
– Eu acho chato. Não acontece nada.
– É verdade.
– O senhor gosta desses filmes, pai?
– Bem, voltando ao Édipo, Aristóteles diz que a história dele, escrita por outro grego, chamado Sófocles, é a melhor de todas as tragédias.
– Existe tragédia boa?
– Acho que para quem faz parte dela, não. Mas como história, a de Édipo é a mais famosa das tragédias.
– Por quê?
– Um dos motivos é que ela não é contada do jeito que eu fiz agora.
– E como é?
– A peça começa com Édipo, já rei, falando com a população sobre as calamidades que estavam acontecendo em Tebas. O povo pedia que ele fizesse alguma coisa.
– Essa é a parte da peste, né?
– Justamente. Eles queriam que o Édipo desse um jeito.
– E o que ele fez?
– Mandou o cunhado, chamado Creonte, ao oráculo de Delfos.
– Tudo se resolvia com o oráculo naquela época?
– Parece que sim.
– E o que o oráculo falou?
– Ele disse que tudo melhoraria quando o assassino do antigo rei Laio fosse pego.
– Mas não foi o Édipo que matou ele?
– Aí é que está a genialidade do Sófocles. Ele começou pelo final e criou algo como uma história de detetives em que o investigador é o culpado e não sabe disso.
– Muito massa! E complicado também.
– Sem dúvida. A peça mostra a investigação de Édipo até a descoberta da verdade.
– E ele descobre?
– Claro, esse é o fechamento da tragédia!
– E o que acontece quando ele descobre?
– A mãe dele, Jocasta, se mata e Édipo fura os próprios olhos.
– Credo! Nível Jogos Mortais, isso!
– Realmente. É interessante perceber que a ação de furar os olhos praticada por Édipo tem um significado simbólico.
– Simplifica isso, pai.
– Quer dizer que o autor queria dizer alguma coisa através dessa atitude do Édipo.
– Dizer o quê?
– Édipo, quando tinha os olhos bons, não era capaz de ver tudo o que acontecia à sua volta. Era como se fosse cego. Ele fura os olhos meio que para dizer que antes não enxergava e agora, cego, era capaz de perceber a verdade. Furar os olhos de modo a olhar para dentro: esse é o ponto.
– Muito complicado, e triste também.
– Sem dúvida.
– Acontece o que depois?
– O Édipo vai embora e seus dois filhos brigam pelo controle da cidade. O que acontece a seguir é narrado em duas outras peças de Sófocles: Antígona e Édipo em Colono.
– O senhor conta pra mim?
– Agora não. Quem sabe outra hora? Filho, posso fazer uma pergunta?
– Sim?
– Por que você pediu para que eu contasse uma história?
– Bem, a professora está falando de narração e mandou a gente escrever uma em casa.
– Você queria usar a minha história como lição-de-casa?
– Só como inspiração, pai.
– Hum, sei. Você não vai poder falar do Édipo.
– O professor já conhece?
– Com certeza, mas você pode aproveitar alguma ideia.
– Será que eu consigo?
– Só tentando para saber.
– Pai, por que uma história tão antiga ainda é contada?
– Acho que é porque ela trabalha com temas que não perdem nunca a validade. Ou seja, a história é muito boa. Você sabia que ela permaneceu como modelo até há pouco mais de cem anos?
– Não brinca!
– É. Até mais ou menos 1880 esse modelo, chamado aristotélico, permaneceu como referência. Foi um sujeito chamado Ibsen que começou a mudar as coisas.
– E o que ele fez?
– Ele fez com que uma história, que normalmente seria contada em um romance, com um narrador dando várias explicações, pudesse ser transformada em obra dramática.
– Não entendi nada.
– É melhor deixar para lá. Outro dia eu leio para você uma história do Ibsen.
– Será que vou entender?
– Acho que sim. Quem sabe eu mostro também Tchékov e Beckett?
– Quem são, pai?
– Outros caras que mudaram o teatro. O Beckett tem uma peça interessante chamada Esperando Godot.
– O que acontece nela?
– Nada, filho.
– Como assim?
– Não há ação e este é o ponto. Umas pessoas reúnem-se numa estrada, têm umas conversas meio absurdas e ficam esperando esse tal de Godot.
– Quem é ele?
– Não sei não.
– E por que eles estão esperando por ele?
– Também não sei.
– Por quanto tempo eles tiveram que esperar?
– Acho que para sempre. Esse Godot nunca chegou, filho. Godot nunca chegou...

Nenhum comentário: