sábado, 22 de março de 2008

Benzetacil

Dói pra porra! Dói pra caralho! Puta merda, como dói!

Que é isso! - diriam alguns. - Já começa esculhambando!

É verdade, inicio enumerando as sutis exclamações proferidas por aqueles que passaram pela não muito alegre experiência de terem uma injeção de benzetacil - ou benzilpenicilina benzatina, conforme descobri na vebe* - aplicada em seus braços ou nádegas.

No meu caso, felizmente, raras foram as vezes em que tive de recorrer a tão drástico tratamento. É verdade que durante minha mais tenra infância fui submetido a várias delas para tratar de algumas erupções cutâneas, ou perebas. Contudo, para minha alegria, recordo-me muito pouco desses dias, a não ser pelo sempre relembrado fato de que minha mãe toda vida tinha que fazer um percurso diferente em direção à farmácia, pois eu já era conhecedor do que me aguardava e não estava definitivamente disposto a colaborar com a inexplicável sessão de torturas. Lembro-me também das balas - bombons, no Ceará -, embarés e outras guloseimas para mim oferecidas como suborno para que eu me encaminhasse ao abatedouro de modo menos exasperado.

Meu pai, de outra forma, encontrou-se com a benzilpenicilina benzatina por diversas vezes. Não vale nem a pena lembrar aqui de todos os casos, mas o fato é que um médico chegou a prescrever-lhe algumas dezenas delas, as quais, salvo engano, ele dispôs-se a tomar. O doutor que fez essa sutil recomendação era do serviço público e tal fato está de certo modo relacionado com o evento que inspirou este pequeno texto.

Voltando à minha modesta experiência pessoal, tive até agora apenas dois encontros com a benzetacil durante a vida adulta. Por sinal, pode-se dizer que foi praticamente um único contato, já que se tratou da mesma gripe e as aplicações ocorreram com a separação de poucos dias. Nessa época, eu morava em um quartinho alugado na casa de uma senhora bastante peculiar e, graças ao descuido com a saúde característico daqueles que vivem sozinhos, minha leve gripe transformou-se em verdadeiro transtorno. Eu tinha uma namorada na época, que depois veio a transformar-se em esposa, e ela recomendou umas pastilhas de nome parecido com Bernadete, as quais, devido ao exagero no consumo, literalmente estropiaram minha goela.

Com a garganta plenamente lascada, não podia ingerir praticamente nenhum alimento - até água de coco não passava - e tive que apelar para uma prima que possuía algum conhecimento na área médica. Ela me disse que o bom seria tomar logo uma benzetacil, pois o problema passaria menos lentamente. Decidi - a despeito da minha implicância com injeções - aceitar a sugestão e fui à primeira farmácia que encontrei, lá comprando duas ampolas do famigerado líquido e também duas seringas, que, só de olhar, me davam certo mal-estar.

De posse do medicamento, voltei ao apartamento e confabulamos acerca do melhor local para a incisão do líquido. Como tinha vergonha de mostrar a poupança, decidi que a aplicação seria no braço direito. Tomada a decisão, entreguei minha alma a Deus. Ela, então, injetou calmamente a benzilpenicilina e eu senti aquele líquido viscoso rasgando lentamente a carne próxima ao meu ombro. Devo dizer que doeu bastante - como diz a música do João Bosco - e que fiquei com alguma dificuldade para mover o braço. Tomando como base a experiência anterior, procurei deixar o orgulho de lado e decidi que a próxima aplicação seria nas nádegas. Devo dizer que me arrependi profundamente dessa decisão, pois a segunda experiência foi mais dolorosa que a primeira. Felizmente, o efeito da benzetacil foi rápido e não demorei muito para ficar bem novamente.

Contudo, o causo mais interessante de que me lembro relacionado à benzetacil ocorreu com um tio meu. Ele estava com algumas inflamações de origem indeterminada pelo corpo e resolveu dirigir-se a um posto de saúde - ou hospital, sei lá. Como a grande maioria dos cidadãos brasileiros, principalmente os com recursos limitados - que são quase todos -, ele teve que procurar o serviço público. Lá chegando, foi atendimento por um daqueles médicos que acredito serem pagos de acordo com sua produtividade e o despachou apressadamente. Mal levantou a vista para olhar o paciente, não fez lá muitas perguntas e receitou, num arranque, injeções da já famosa benzilpenicilina benzatina.

Meu tio, não depositando lá muita confiança no diagnóstico e na prescrição dada pelo médico, tomou o rumo de casa após receber o medicamento - gesto este realizado de modo um tanto maquinal. Filosofando em sua bicicleta - meio de locomoção típico dos habitantes do interior do Ceará, substituído gradativamente pelas motos -, pedalou por vários quilômetros até chegar a uma ponte de madeira que passa sobre o famoso rio de sua cidade natal. Sobre as tábuas que o separavam das limpas águas - ainda pouco tocadas - desceu do veículo, colocou-o deitado sobre as madeiras e sentou-se, deixando os pés balançando no vazio. Olhou para o rio que corria sob seu corpo, pegou distraidamente as ampolas no bolso de sua camisa - aquele, que fica sobre o coração - e abriu-as, uma a uma. Em seguida, verteu tranqüilamente seu conteúdo nas águas calmas do rio e observou os peixes indo em sua direção. Levantou-se, então, pegou sua bicicleta e rumou lentamente para casa.

Chegando ao sítio, contou à esposa e familiares sua ida à cidade, falou acerca dos exames superficiais e da indiferença do doutor, e narrou sua rebelde atitude de derramar o antibiótico no rio, terminando com a seguinte frase - causadora de estrondosas gargalhadas em uma prima minha e de uma conseqüente repreensão por parte de outra -, enunciada no legítimo sotaque sapesista:

- Bonito mesmo era ver os peixinhos abrindo a boca e bebendo o remédio!

Perguntado sobre o motivo que o levou a tal gesto, mandou outra pérola:

- Fiz isso porque não sou rico. Se fosse rico, o médico tinha dado outro remédio. Para pobre, só dão benzetacil.

*Vebe é como chamamos, às vezes, a Web - ou World Wide Web. Para resumir, a Internet.

domingo, 2 de março de 2008

Brasilianos e o ócio criativo

Há tempos tive vontade de ler "O ócio criativo" de Domenico De Masi. Um dia desses, passando por uma livraria, encontrei um exemplar em exposição e, como compulsivo por livros, adquiri o mesmo. Achei sua leitura bastante interessante, encontrando passagens com as quais sempre concordei, mas nunca havia visto impressas. Outro dia, lendo uma dessas execráveis revistas semanais numa sala de espera de consultório médico, deparei-me com um artigo de um dessas pessoas alienadas e iludidas pelo universo corporativo - Stephen Kanitz - e minha relação de cumplicidade com o ócio criativo aumentou ainda mais.

Como já há muito tempo percebi que as novas informações importantes chegam a mim sempre duas vezes, separadas entre si por um pequeno lapso de tempo, gostaria de explicar o que o Kanitz tem realmente a ver com o ócio criativo e com este relato.

Numa quarta-feira à noite, assistindo a uma aula de português - como muitos em meu país, buscando trabalhar no serviço público - vi minha professora - uma doce e competente vovó sulista - comentando um artigo cujo autor fazia referência ao fato de sermos denominados brasileiros e não brasilianos. De acordo com os argumentos que ouvi dela, e que poucos dias depois li no artigo do próprio Kanitz - vindo daí minha observação acerca dos eventos que vêm aos pares -, o defensor da idéia, deveríamos ser chamados de brasilianos, tal como acontece, em nosso idioma, com os italianos, os iranianos e os bolivianos. Pelo que me lembro do texto, somos chamados de brasileiros desde o início de nossa colonização por Portugal, sendo esse termo utilizado para referir-se àqueles que vinham às nossas terras explorar as riquezas e depois retornavam à metrópole, deixando apenas destruição e nada em troca.

Assim, Kanitz defende a idéia de que apenas os exploradores - no mau sentido - do Brasil, aqueles que desejam apenas auferir benefícios sem pensar na coletividade e no desenvolvimento da nação, deveriam ser denominados brasileiros. Os outros, os legítimos cidadãos, preocupados com o país, dotados de integridade, de força laboral e de compromisso com um futuro melhor para todos, seriam os brasilianos, entre os quais o autor se incluía.

É óbvio que concordei, de pronto, com os argumentos da professora e, depois de ler o texto, com as explicações mais elaboradas do mesmo. Passei a querer denominar-me, desde então, brasiliano, decisão da qual não me arrependi, pelo contrário, acho que isso deveria ser levado realmente a sério e colocada a questão em debate nacional, substituindo tantos outros colóquios, que geralmente versam sobre temas muito menos pertinentes.

Mas o que tem a ver todo esse papo de brasilianidade, da professora de português e do Stephen Kanitz com o ócio criativo do De Masi? Bem, sentado na sala de espera da clínica, lia com bastante interesse o artigo da malfadada revista, concordava com o que via, mas, num determinado momento - desses que apenas reforçam minha constatação de que as novidades chegam-me aos pares -, percebi uma crítica de Kanitz a De Masi. O autor falava que brasileiro gostava de "O ócio criativo", livro mais conhecido, aqui no Brasil, com as idéias do sociólogo italiano. Deste modo, compactuar com as idéias de De Masi representava uma falta, talvez tão grave quanto ser corrupto. Talvez Kanitz não tenha lido o livro, ou não tenha entendido do que se tratava, ou então está muito velho e condicionado a um mundo antigo a ponto de não perceber o equívoco de seu posicionamento.

De Masi fala da sociedade pós-industrial, tema recorrente no livro, e de várias características importantes da mesma. Discorre sobre o teletrabalho; sobre a altamente recomendável redução no número de horas trabalhadas por semana; fala da necessidade de criar meios para o bom aproveitamento do tempo livre; trata da evolução quantitativa do trabalho de tipo intelectual-criativo e da concomitante redução de importância daquele de caráter mecânico, que requer pouca ou nenhuma qualificação; o sociólogo critica, ainda, a rigidez das empresas, dos governos e dos sindicatos, bem como a demora em perceber as mudanças em curso, principalmente o fato de que os empregos jamais crescerão numa velocidade grande o bastante para abarcar o aumento da população, tendo em vista a constante automação. Assim, não importa o que digam governantes e empresários, a auto-sustentabilidade do crescimento econômico e os grandes investimentos que vemos acontecer - quer dizer, que nem sempre vemos acontecer - nunca serão suficientes para proporcionar trabalho a todos, a menos que importantes mudanças legislativas ocorram.

Assim, apesar de achar que De Masi de vez em quando exagera nas previsões e mostra falta de domínio acerca de alguns temas, acredito que muito do que ele diz é acertado, que no futuro trabalharemos bem menos - em quantidade de horas e dias da semana -, sem prejuízo para a produtividade - conceito tão caro ao pessoal da gestão -, que teremos de aprender mecanismos para aproveitar o tempo ocioso e que o trabalho exigirá cada vez mais conhecimento e criatividade. Deste modo, acho equivocada a posição de Kanitz, rebaixando aqueles que se identificam com "O ócio criativo" ao grupo dos chamados brasileiros.

Acredito, ao contrário, ser um brasiliano. Sou otimista quanto ao futuro da humanidade e acho que menos trabalho, mais lazer, mais conhecimento e criatividade serão algumas das características dos melhores tempos que virão.